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Trote - Impunidade e silêncio reforçam atos de violência, humilhações e abusos nas universidades

Andréia Martins

Da Novelo Comunicação

Atos violentos, humilhações e até mortes são cada vez mais frequentes quando o assunto é o trote universitário. No final de 2014, diversas estudantes relataram casos de abusos sexuais ocorridos em festas e no próprio campus, o que elevou a discussão para outro patamar. Muitos responsáveis, porém, não foram denunciados ou punidos.

Simbolicamente, o trote é um rito de iniciação da vida estudantil para a vida acadêmica. Também é uma maneira de confraternização entre os novos estudantes e os veteranos. A origem desse rito remonta à Idade Média e, desde então, designa atos de zombaria e a imposição de tarefas a calouros por parte dos veteranos.

Iniciado na Europa, em países como França, Alemanha e Portugal, essa prática sempre foi violenta e desrespeitou a lei. No entanto, havia poucas punições porque se esperava que, naquele momento, os novatos se submetessem aos mais velhos no intuito de estabelecer uma relação de companheirismo. Por isso, não havia questionamentos.

Direto ao ponto: Ficha-resumo

Há o pintar a cara, raspar a cabeça, pedir dinheiro no farol, que podem ser vistos como leves, desde que tenham a concordância do calouro. No entanto, com o passar dos anos, o trote ganhou outras dimensões, resultando até em óbito. Introduzido no Brasil no século 18, por influência de estudantes da Universidade de Coimbra, Portugal, em 1831 foi registrado o primeiro caso de morte durante o trote, na Faculdade de Direito do Recife.

Ao ser humano são atribuídos direitos e garantias que têm por finalidade o respeito à sua dignidade. O trote que resulta em lesão corporal, injúria, constrangimento, viola muitos desses direitos, como o direito à vida, à integridade física e psíquica, à liberdade, à autonomia de vontade, à honra objetiva e subjetiva e à dignidade.

No Brasil, apesar de diversos relatos de violência que resultaram em ferimentos e danos psicológicos a estudantes, foi apenas em 1999, com a morte de um calouro na Universidade de São Paulo, vítima de afogamento após o trote, que o assunto ganhou peso.

A discussão resultou em diversas medidas que objetivavam humanizar o trote, reduzindo o uso de bebidas e de práticas humilhantes, instituições e alunos se voltaram para trote solidário e outras atividades que contribuam com a sociedade. Diversas universidades proibiram práticas violentas dentro do campus, e no Estado de São Paulo, o trote foi proibido por lei nas escolas superiores e universidades estaduais. O que não foi suficiente para encerrar a prática de trotes violentos.

O pesquisador e sociólogo Antônio Almeida estuda desde 2002 o comportamento dos estudantes no trote. Para ele, o trote é um microcosmo da sociedade. Ali, podemos ver violências, injustiças, preconceitos e desigualdades que permeiam nosso convívio social.

Não à toa, durante o trote, veteranos apelidam calouros fazendo referência à origem étnica, opção religiosa, opção sexual, aparência física, condição de gênero, condição social, cor da pele, etc.

Almeida classifica duas categorias de instituições: a primeira, em que o trote ocorre de maneira eventual, ou seja, um aluno humilha, fragiliza e provoca o outro, ocasionando situações graves em que pessoas ficam feridas ou têm sua dignidade violada; e a segunda, em que o trote se torna recorrente, violento e faz parte da cultura da instituição, envolvendo docentes, alunos e funcionários. O sociólogo chamou a este último tipo, de instituição trotista.

Na conclusão do pesquisador, para entrar em grupos desta instituição, as pessoas têm de ser testadas, humilhadas e violentadas e mesmo assim permanecer em silêncio.

A cultura do silêncio

Com essa tradição arraigada nas universidades, o trote estabeleceu uma cultura do silêncio no campus. A relação de poder imposta aos novos estudantes pelos mais velhos acabou por inibir os calouros, levando a impunidade das ações a outros casos.

No final de 2014, estudantes de diferentes universidades, entre elas a USP, denunciaram a ocorrência de abusos sexuais e estupros no campus e em festas acadêmicas. As vítimas alegaram que não receberam apoio da instituição quando comunicaram o caso, mas a maioria ainda não havia relatado o ocorrido por medo e falta de apoio.

Uma CPI para apurar os casos foi instaurada. O relatório final apresentou mais de 30 recomendações que foram encaminhadas ao Ministério Público e pede que as investigações sobre violações prossigam, com punições aos agressores.

Entre as recomendações estão classificar os trotes praticados contra calouros nas universidades de todo o país como crime de tortura no Código Penal Brasileiro, proibir o patrocínio de eventos estudantis por empresas que fabriquem, comercializem ou distribuam bebidas alcoólicas e criar uma ouvidoria estudantil vinculada à Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania, para atender os casos de abuso e de assédio nas instituições de ensino do Estado.

Coletivos feministas e grupos formados por estudantes, homens e mulheres, também se organizaram para denunciar a cultura machista das universidades, presente em cantos pejorativos sobre mulheres, “leilão” de calouras, entre outras práticas.

Mas esse não é um problema só do Brasil. Em 2014, 55 universidades estavam sendo investigadas pelo governo dos EUA pela gestão das denúncias sobre abuso sexual no campus, entre elas algumas das mais prestigiadas do país como Harvard, Virginia e Princeton. No país, casos de estupro e assédio afetam uma em cada cinco estudantes durante sua passagem pela universidade.

Em 1990, o presidente George Bush assinou uma lei obrigando qualquer escola que recebesse fundos federais a relatar todos os incidentes de crime no campus à polícia. O ato tem o nome de Jeanne Clery, uma estudante de 19 anos que foi estuprada e morta em seu dormitório na universidade de Lehigh, na Pensilvânia, em 1986. A lei apresentava falhas, e foi recebendo complementos ao longo dos anos.

O governo Barack Obama avançou no assunto, atribuindo à universidade a obrigação de investigar as denúncias e casos. O objetivo, na visão do governo, era que dentro do ambiente escolar, longe da exposição à polícia, as vítimas se sentissem mais à vontade para contar o ocorrido.

No entanto, especialistas avaliam que, dessa forma, a escola foi transformada em um tribunal, com professores e diretores se colocando no papel de advogados e juízes, e o mais grave, criminosos recebendo punições leves como suspensão ou expulsão, quando deveriam cumprir pena de prisão.

O poder de impunidade dado a esses estudantes agressores reforça sua conduta narcisista, aquele que, segundo uma das definições de Freud, busca, acima de tudo, proteger-se e se satisfazer, negando a alteridade. Ou seja, ele não ouve críticas e tudo aquilo que é diferente dele torna-se menor e insignificante.

Tratar trotes violentos e crimes no campus como algo paralelo à realidade, como se os responsáveis não soubessem o que estavam praticando, não traz benefícios às vítimas e isenta de culpa os responsáveis. No decorrer do tempo, a consequência não será sentida apenas na universidade. Quando este indivíduo completar seus estudos, esse comportamento e o narcisismo exacerbado serão praticados no seu convívio com a sociedade.

DIRETO AO PONTO

Atos violentos e humilhações que já tiveram óbitos como consequência são fatos cada vez mais frequentes quando o assunto é o trote universitário. No final de 2014, diversas estudantes relataram casos de abuso sexual ocorridos em festas e no próprio campus, o que elevou a discussão do para outro patamar.
O trote é um rito de iniciação da vida estudantil para a vida acadêmica que remonta à Idade Média e, desde então, designa atos de zombaria e a imposição de tarefas a calouros por parte dos veteranos. Iniciado na Europa, essa prática sempre foi violenta e desrespeitou a lei.
O pesquisador e sociólogo Antônio Almeida estuda desde 2002 o comportamento dos estudantes no trote. Para ele, o trote é um microcosmo da sociedade. Ali, podemos ver violências, injustiças, preconceitos e desigualdades que permeiam nosso convívio social.
Com essa tradição arraigada nas universidades e administrações que ainda não consideram o trote grave, desde que não resulte em óbito, foi o estabelecimento de uma cultura do silêncio no campus. A imposição desta relação de submissão aos estudantes mais velhos acabou por inibir os novatos, levando a impunidade das ações a outros casos, como estupros e abusos cometidos dentro do campus ou em repúblicas de estudantes.

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