Clarice Lispector - 100 anos do nascimento da escritora
"Não escrevo para fora, escrevo para dentro". Assim a escritora Clarice Lispector (1920-1977) explicava sua literatura. Considerada uma das maiores escritoras do Brasil, ela foi romancista, contista, cronista, tradutora e jornalista.
Clarice Lispector pertence à terceira fase do movimento modernista e imprimiu em suas obras uma literatura intimista, de sondagem psicológica e introspectiva, com mergulhos no pensamento e na condição humana.
Em 2020, comemora-se o centenário do nascimento de Clarice Lispector. A escritora nasceu no dia 10 de dezembro de 1920, em Tchetchelnik, uma aldeia da Ucrânia, então pertencente à Rússia. Seu nome de nascença é Haia. Os pais, judeus russos, decidem emigrar três anos após a Revolução Bolchevique de 1917, devido à violência e a constante perseguição antissemita.
A família chegou ao Brasil em 1922, na cidade de Maceió, onde adotam novos nomes. Haia, então com dois anos de idade, se tornou Clarice. Pouco tempo depois, a família se mudaria de Alagoas para Recife, em busca de melhores condições de vida. Após a morte da mãe, os familiares foram viver no Rio de Janeiro.
Naquela época, as mulheres ainda eram vistas como donas de casa e mães. Mas Clarice Lispector pôde estudar e trabalhou desde muito jovem. Ela começou a trabalhar como professora particular de português e matemática. Em 1939, ingressou na faculdade de Direito, onde concluiu a graduação em 1943. Durante os estudos, começou a trabalhar como repórter na Agência Nacional. Começava aí uma carreira paralela como jornalista, com publicações na imprensa de textos jornalísticos e literários.
Em 1942, Clarice Lispector escreveu seu primeiro romance, que recebeu o título de Perto do coração selvagem. Segundo ela, escrevê-lo foi um processo de angústia, pois "o romance a perseguia". As ideias surgiam a qualquer hora, em qualquer lugar. Por isso, adotou o hábito de anotar as ideias em qualquer pedaço de papel. Ela reuniu as anotações esparsas e concluiu a obra.
Em 1943, Clarice Lispector se naturalizou brasileira. Ela casou-se com um diplomata, o que a fez viver em países como Estados Unidos, Inglaterra, Itália e Suíça, onde escreveu os seus primeiros livros. No mesmo ano, publicou Perto do coração selvagem, narrativa que foi bem recebida pela crítica brasileira, que chegou a comparar seu estilo com escritores como James Joyce e Virgínia Woolf.
O livro conta a história de Joana, desde a sua infância até a vida adulta. O crítico Antonio Candido reconheceu nessa obra um talento literário precoce e a extraordinária capacidade da jovem estender "o domínio da palavra sobre regiões mais complexas e mais inexprimíveis".
A narrativa já mostrava o estilo pessoal de Clarice Lispector, um romance urbano que explora o campo psicológico das personagens e o uso do monólogo interior (discurso da personagem na primeira pessoa, em que ela reflete sobre seus sentimentos, ideias ou experiências). Muitos textos retratam as angústias e introspeções do universo feminino.
Naquela época, a literatura brasileira era marcada pelo regionalismo, com histórias lineares que abordavam a realidade regional do país e as questões sociais. A narrativa da escritora representa uma inovação no romance brasileiro, ao quebrar a linearidade discursiva (do tipo início-meio-fim) e adotar o ponto de vista do narrador não-onisciente para narrar a história.
Em 1959, após seu divórcio, Clarice Lispector volta a residir no Brasil e publica alguns de seus livros principais, como Laços de Família (1960), A Paixão Segundo G.H. (1964), Água Viva (1973) e A Hora da Estrela (1977). Morando no Rio de Janeiro, a escritora também dedica parte de sua produção aos contos.
"Meus livros, felizmente, não são superlotados de fatos, e sim da repercussão dos fatos no indivíduo", afirmou a escritora. A literatura clariciana traz como características elementos como o fluxo de consciência, monólogo interior e a ruptura com o enredo factual. As temáticas são existenciais e psicológicas.
Outra marca de sua literatura é o uso da epifania - momentos em que alguma das personagens (no geral, femininas) passam por uma revelação ou uma tomada de consciência diante de um fato do cotidiano.
A personalidade da escritora também provocava curiosidade e admiração. A escritora francesa Hélène Cixous definiu Clarice como "Se Kafka fosse mulher. Se Rilke fosse uma brasileira judia nascida na Ucrânia. Se Rimbaud tivesse sido mães, se tivesse chegado aos cinquenta. Se Heidegger pudesse ter deixado de ser alemão, se ele tivesse escrito o Romance da Terra".
Pela imprensa, Clarice Lispector já foi chamada de "bruxa", "exótica" e "misteriosa". Mas ela gostava de se definir de uma forma mais simples: uma escritora e uma dona de casa. Também foi chamada de "Esfinge do Rio de Janeiro". O apelido lembra uma passagem da escritora pelo Egito. Em uma viagem, ela olhou fixamente para a esfinge. "Não a decifrei", escreveu Clarice. Mas ela continuou: "Mas ela também não me decifrou".
O mais importante romance de Clarice Lispector é A paixão segundo G.H. Lançado em 1964, ano em que a ditadura militar se consolidou no Brasil. Nesse livro, uma mulher de classe média (GH) ao arrumar o quarto de empregada, se depara com uma barata. Assustada, ela a espreme contra a porta de um armário.
O incidente passa a causar uma série de reflexões existenciais na protagonista, conduzindo-a à tomada de consciência. A obra é um longo monólogo em que a narradora faz um mergulho em si mesma, em um fluxo incessante de pensamentos e sentimentos.
A escritora dizia que escrevia para se entender e para "dizer o indizível". A partir de A paixão segundo G.H, sua obra passa a ser analisada com questões da filosofia e conceitos metafísicos. Críticos comparam alguns de seus textos ao pensamento existencialista de filósofos como o francês Jean-Paul Sartre e dinamarquês Søren Kierkegaard em temas como a angústia da existência humana, o mal-estar cotidiano, o nada, o amor e a liberdade.
Outra obra marcante é Água Viva, publicada em 1973 e considerada "enigmática" por muitos críticos. O romance traz a história de uma solitária pintora que inicia um quadro e resolve escrever para o antigo amante.
A escritora se lança em reflexões sobre o tempo, a vida e a mortes, a coragem e o medo e a arte. "Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante —já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante— já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa", escreve ela.
Clarice trabalhou como jornalista até 1975, passando por revistas e jornais nacionalmente conhecidos, escrevendo crônicas e colunas para o público feminino. A autora faleceu de câncer em 9 de dezembro de 1977, no Rio de Janeiro, um dia antes de completar 57 anos. Durante o período da doença, passou a ficar mais tempo em casa, escrevendo. Foi quando produziu o romance A Hora da Estrela, o último publicado em vida.
No romance, a personagem Macabéa é uma moça alagoana pobre e ingênua, que migra para o Rio de Janeiro e encontra uma série de dificuldades na cidade grande. Ela tem a vida contada por um personagem masculino, Rodrigo, que faz o papel de narrador-escritor que reflete sobre questões existenciais e sobre a construção do discurso.
Macabéa é uma anti-heroína. Um personagem marcante por ser apática, com dificuldades de se expressar e incapaz de enxergar maldade nos outros. Discriminada por todos que a cercam, ela não consegue definir sua própria identidade. Ela sonha em ser uma estrela de cinema, mas a realidade a esmaga no dia a dia. A obra é uma reflexão sobre os esquecidos da sociedade e a falta de perspectiva dos rostos anônimos dos que imigram para os grandes centros urbanos. Apenas com a morte, Macabéa alcança a sua hora de estrela. Clarice Lispector encerra a narrativa com a descoberta da própria morte. Ela morreria dois meses após publicar o romance.
Principais obras de Clarice Lispector
Romances
- Perto do coração selvagem, 1943
- A paixão segundo G.H, 1964
- Água viva, 1973
Novela
- A hora da estrela, 1977
Contos
- Laços de Família, 1960
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