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Ciência - o que o Brasil perdeu com o incêndio do Museu Nacional?

Um incêndio maciço engole o Museu Nacional do Rio de Janeiro, um dos mais antigos do Brasil (AFP PHOTO / STR)
Imagem: Um incêndio maciço engole o Museu Nacional do Rio de Janeiro, um dos mais antigos do Brasil (AFP PHOTO / STR)

Por Carolina Cunha, da Novelo Comunicação

No dia 2 de setembro, o Museu Nacional foi consumido por um incêndio de grandes proporções, no que já é considerado a maior tragédia museológica do Brasil. O acidente aconteceu justamente no ano em que a instituição comemorava 200 anos de existência. Funcionários avaliam que cerca de 90% do acervo em exposição foi consumido pelas chamas. “O dano é irreparável”, diz João Carlos Nara, diretor do Museu Nacional.

Localizado no Rio de Janeiro, o museu é a instituição científica mais antiga do país e uma das mais importantes do mundo. Foi fundado pelo rei Dom João VI em 1818, e seu primeiro acervo surgiu a partir de doações da Família Imperial e de colecionares particulares. Atualmente ele tinha o maior acervo da história natural da América Latina, com 20 milhões de itens. As peças tinham um valor incalculável e a maioria nunca mais poderá ser vista pessoalmente.

Passado em cinzas

Como um país pode salvaguardar a sua memória? O museu é o lugar onde se guardam coisas que são importantes para a história de um país, de uma época e de um povo.  O museu perpetua um conhecimento adquirido através da pesquisa, preservação e a divulgação de bens materiais e imateriais.  Quando vamos a um espaço como esse, o museu cumpre um papel social e educativo de transmitir cultura para a sociedade. É um relicário de nossas memórias enquanto humanidade e seu ambiente.

Os vestígios materiais do passado como objetos pessoais, fósseis, obras artísticas entre outras coisas muitas vezes são os únicos elementos ou documentos que sobram de quem viveu há séculos ou milênios. Mesmo se o acervo for digitalizado, quando se destrói um objeto, dificilmente ele pode ser recuperado. Por isso, o desaparecimento desses elementos originais também significa o fim de parte da história do Brasil e do mundo.

O Museu Nacional é a instituição matriz da ciência no Brasil e representava os avanços científicos, o conhecimento e a riqueza cultura do país e do mundo. Com mais de 20 milhões de itens, o museu era especializado nos estudos de paleontologia, antropologia, geologia, zoologia, arqueologia e etnologia biológica.

A instituição tinha uma das mais completas coleções de fósseis de dinossauros do mundo, múmias andinas e egípicias e artefatos importantes da arqueologia brasileira. Outra perda foi a biblioteca Francisco Keller, com um amplo acervo de 537 mil livros. O único objeto que resistiu às altas temperaturas foi o Meteorito Bendegó, que ficou intacto em meio aos escombros do edifício.

O edifício também foi palco de importantes acontecimentos históricos. O museu ocupa um prédio histórico na Quinta da Boa Vista, zona norte do Rio de Janeiro. O palácio foi doado por um comerciante e depois se tornou a residência oficial da família real no Brasil, entre 1816 e 1821. Foi nesse palácio que a princesa Leopoldina (esposa de Dom Pedro I) assinou a Declaração de Independência do Brasil (1822) e foi realizada a primeira Assembleia Constituinte (1824), para elaborar a primeira Constituição brasileira.

A monarquia brasileira era representada no museu pela Sala do Trono, que se tornou um dois maiores símbolos do Segundo Reinado. O museu mantinha na sala um dos tronos de Dom Pedro II, móveis originais da época e centenas de objetos doados pela Família Real. Outro destaque era a pintura das paredes do cômodo: ela criava uma ilusão especial de alto relevo criada pelo pintor italiano Mario Bragaldi.

A seção de Paleontologia exibia os fósseis e a réplica do Maxakalisaurs topai, o maior dinossauro já montado no país. Tratava-se de um animal herbívoro com cerca de 13 metros de comprimento e 9 toneladas. Em outra sala ficava Luzia, nome dado ao fóssil humano mais antigo encontrado nas Américas, com cerca de 11 mil anos. Sua descoberta é um marco da ciência e ajuda a remontar a história da humanidade. Luzia também representava a “brasileira” mais antiga do nosso território.

A seção de Antropologia era riquíssima, com mais de 40 mil objetos. Representando mais de 300 povos indígenas, o acervo trazia artefatos que remontam ao século 19.  O incêndio destruiu toda a coleção de etnologia indígena exposta, inclusive de vários povos desaparecidos. Na parte regional, o museu trazia um acervo de Folclore e Cultura Popular, que representava os diversos tipos humanos do Brasil como a vida sertaneja, objetos dos pampas gaúchos, objetos musicais tradicionais, remos de ribeirinhos e rendas do Nordeste.

Vários objetos também ajudavam a contar a história dos povos africanos. Com cerca de 700 itens, a coleção de etnologia africana e afro-brasileira era uma das maiores do mundo. Dentre as peças preciosas destruídas estão máscaras ritualísticas, instrumentos musicais, armas e o trono do rei africano Adandozan (1718-1818), do antigo reino do Daomé.

Já a coleção egípcia do Museu Nacional era considerada a maior da América Latina. O local é uma referência no Brasil na área de Egiptologia, que estuda o Egito Antigo. O tema era uma das paixões do imperador Dom Pedro II, considerado o nosso primeiro “egiptólogo”. O imperador herdou do pai a coleção egípcia do Museu atual e adquiriu várias peças durante viagens realizadas no século 19. Em 1876, Dom Pedro II viajou para o Egito onde recebeu o caixão da Dama Sha-Amun-em-su como presente.

O acervo de Botânica também se perdeu. Em 1831, o botânico alemão Ludwig Riedel criou o Herbário do Museu Nacional, o primeiro do país. Ela guardava vários exemplares da flora brasileira, coletados em expedições científicas de naturalistas daquele século. O herbário do museu chegou a ter 550 mil espécimes de todos os biomas brasileiros, que refletiam a riqueza da fauna e flora brasileira. Muitas espécies estão extintas.

Uma tragédia anunciada

O acidente do Museu Nacional poderia ter sido combatido, mas foi prejudicado pela falta de investimento e a má gestão de riscos. Além de problemas na estrutura, o edifício histórico não tinha um plano de proteção e combate a incêndios, o que o deixava em situação irregular. Os bombeiros relatam que na hora do fogo, os hidrantes estavam descarregados. Boa parte da estrutura do prédio era de madeira, e o acervo tinha muito material inflamável – o que fez o fogo se espalhar rapidamente.

O Museu Nacional era administrado desde 1946 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que também usava seu acervo para atividades de ensino e ciências. Muitos professores tinham laboratórios no edifício. O material era usado para pesquisas de estudantes dos mais variados níveis, desde o ensino médio ao pós-doutorado.  Por isso, muitos dados de pesquisas também se perderam nas chamas.

O reitor da instituição, Roberto Leher, responsabilizou o governo federal pelo incêndio e afirmou que os recursos para manutenção do museu sofreram corte de 37% nos últimos quatro anos. Com o orçamento reduzido, salas de exposição foram fechadas e os funcionários chegaram a fazer uma vaquinha virtual para reabrir a popular instalação do dinossauro Dino Prata. Em 2015, o espaço chegou a fechar as portas por falta de pagamento de funcionários.  

Em 2018, o museu não recebeu integralmente a verba de R$ 520 mil por ano para sua manutenção cotidiana. Segundo o reitor, em 2015 foi apresentado um projeto do BNDES para instalação de um novo sistema de prevenção de incêndios, mas o dinheiro atrasou e só foi liberado neste ano. A reforma começaria após as eleições.

O edifício tombado do Museu Nacional está interditado e deverá ser reconstruído. Segundo o reitor da UFRJ, as pessoas estão sensibilizadas com o que aconteceu. “Um dos pontos mais importantes para a gente é não deixar morrer essa ideia, não deixar entrar para o esquecimento essa situação que a gente está vivendo aqui. Nós já perdemos parte do nosso patrimônio, não podemos permitir que o Brasil perca parte de sua história. Então esse palácio tem que ser preservado da melhor forma possível”, acredita Leher.

Apesar da perda irreparável, a UFRJ vai aceitar doações de peças de outros museus e coleções particulares para recompor o seu acervo. O trabalho de reconstrução deve contar com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Mas alguns pesquisadores da universidade defendem que o Museu Nacional permaneça destruído, como um memorial para lembrar o descaso e abandono pelo Governo Federal.

Sucateamento de museus brasileiros

Os museus lidam com bens culturais que se quer preservar, e que estão permanentemente submetidos a determinados perigos que ameaçam a integridade física do acervo e dos edifícios. Por isso, precisam de modernização constante. O incêndio devastador do Museu Nacional não é um caso isolado no país. Várias instituições culturais sofrem com a falta de manutenção e de investimento, o que demonstra o descaso do governo com o patrimônio e a ciência.

Já pegaram fogo  a Cinemateca Brasileira (2016), o Museu da Língua Portuguesa (2015), o Liceu de Artes e Ofícios (2014), o Memorial da América Latina (2013), o Museu de Ciências Naturais da PUC Minas (2013) e o arquivo do Hospital Psiquiátrico do Juqueri (2005). No Rio de Janeiro, em 1978 um incêndio destruiu quase todo o acervo do Museu  de Arte Moderna, com mais de mil obras de arte.

Outros museus brasileiros também estão com problemas estruturais. O Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiranga, está fechado há cinco anos. Um laudo verificou o risco de desabamento no prédio construído em 1885. As obras devem custar cerca de R$ 100 milhões e a reforma, que anda a passos lentos, deve ser finalizada somente em 2022.

Os museus universitários possuem recursos provenientes das Universidades e Institutos Federais. Outra fonte de recursos são o Ministério da Cultura e o IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Com a crise fiscal do Estado, o Governo cortou ainda mais os orçamentos para a preservação do patrimônio cultural nacional e para o desenvolvimento da ciência.

Em 2017, o Museu Paraense Emílio Goeldi, o segundo mais antigo do país, quase fechou por falta de recursos. A instituição sofreu um corte de 40% da verba, o que ameaçou o funcionamento de suas bases. O museu possui mais de 4,5 milhões de itens sobre a fauna e a flora da Amazônia.

No ano passado,  a Prefeitura do Rio de Janeiro cortou as verbas de manutenção do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos. O museu, erguido sobre uma enorme cova repleta de ossos de escravos, atraiu 70.000 visitantes em 2016. Este ano, sobrevive com a doação de amigos para pagar itens como luz e material de limpeza.

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