Marielle Franco - Um ano após sua morte, vereadora se tornou símbolo dos direitos humanos
Quem matou Marielle? No mês que se completa um ano de sua morte, a pergunta ainda está sem respostas. No dia 14 de março de 2018, a vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Anderson Gomes foram assassinados na região central do Rio de Janeiro (RJ).
Eles saíam de um evento no qual a vereadora palestrava, quando um Cobalt prata emboscou o veículo e disparou 14 tiros. Apenas Fernanda Chaves, a assessora de imprensa, sobreviveu. Nada foi roubado. A análise das câmeras de segurança divulgadas pela polícia indica que a execução foi premeditada e que o carro aguardou a saída da vereadora para segui-la.
O assassinato brutal da vereadora carioca comoveu o Brasil e repercutiu em outros países. Multidões foram às ruas para manifestar solidariedade e cobrar investigações sobre o crime. Logo surgiu um movimento, marcado pelos valores identitários dos grupos que ela representava.
As expressões "Marielle Presente" e "Marielle Vive" foram usadas em atos e homenagens. Sua imagem foi estampada em camisetas, murais urbanos e em desfiles de Carnaval.
Quem mandou matar Marielle e qual foi o motivo?
Nos próximos meses, sua morte significaria um afrontamento aos movimentos sociais e se tornaria um símbolo de luta em prol dos direitos humanos. "A execução de Marielle foi um crime político bárbaro, uma tentativa de silenciamento de milhões de vozes", diz o deputado David Miranda (PSOL).
Organizações do mundo inteiro se manifestaram em solidariedade a ela, denunciando que a execução de uma política representa uma ameaça à democracia. Também denunciaram o risco que ativistas correm no Brasil. De acordo com a ONG Front Line Defenders, o país está entre os que mais matam ativistas: só em 2017 foram registradas mais de 60 execuções entre as mais de 300 registradas em todo o mundo.
"O assassinato de uma defensora de direitos humanos pode ser uma tentativa de gerar medo e silêncio, de interromper a luta por direitos, de impedir que se construa uma sociedade mais justa e igualitária. O Estado deve responder a isso com investigação e justiça e, assim, impedir que o medo e o silêncio se disseminem", diz um relatório da ONG Anistia Internacional, que reúne informações veiculadas publicamente sobre o caso.
Trajetória e atuação de Marielle
Marielle Franco morreu aos 38 anos e era considerada uma jovem liderança em ascensão. Eleita pelo PSOL, a carioca foi a quinta vereadora mais votada no Rio em 2016.
Era formada em sociologia, com pós-graduação em administração pública. Sua imagem representava a luta de muitas minorias. Nasceu em uma favela, era negra e casada com uma mulher. Passou grande parte da vida no Complexo da Maré, uma das maiores comunidades pobres do Rio de Janeiro.
A atuação política de Marielle foi marcada pelos direitos das mulheres, dos negros, dos LGBTIs e dos moradores de favelas. Sua militância começou cedo, após ingressar no pré-vestibular comunitário e perder uma amiga, vítima de bala perdida, num tiroteio entre policiais e traficantes no Complexo da Maré. Depois, trabalhou em projetos sociais e esteve na equipe do deputado federal Marcelo Freixo (PSOL), conhecido por presidir uma investigação na Assembleia do Rio contra as milícias - organizações criminosas formadas, muitas vezes, por policiais e ex-policiais.
Na Câmara, Marielle denunciava a atuação das milícias cariocas, execuções extrajudiciais e outras violações de direitos cometidas por policiais e agentes do estado. Criticava também o modelo de atuação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), tema de sua tese de mestrado. Quando foi assessora da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia, chegou a dar suporte para famílias de policiais mortos pela violência da cidade.
Pouco antes de morrer, Marielle acabara de ser nomeada relatora da Comissão Representativa da Câmara de Vereadores, que deveria fiscalizar e monitorar a intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro. Ela criticava a violência perpetrada pelo tráfico e pelas incursões policiais abusivas em comunidades.
Quatro dias antes de ser morta, a vereadora denunciara o assassinato de dois jovens em Acari, na Zona Norte do Rio. Em post no Facebook, afirmou que o batalhão da Polícia Militar que atua na região é conhecido como "batalhão da morte". Ela também havia denunciado a morte de um jovem em favela. "Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM. Matheus Melo estava saindo da igreja. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?", questionou.
Desinformação e ódio
Apesar das manifestações de repúdio ao crime, parte da sociedade reagiu com críticas, calúnias e mensagens de ódio contra Marielle, numa espécie de tentativa de apagamento de sua imagem. Mensagens violentas circularam nas redes sociais, com comentários homofóbicos e preconceituosos. Muitos tentavam minimizar a morte dela, alegavam que ela estava sendo privilegiada pela mídia ou que o assassinato era apenas mais um nas brutais estatísticas da violência no Brasil.
Chamou atenção a grande quantidade de fake news (notícias falsas), que tentavam associá-la de forma indevida a traficantes de drogas e alegavam uma suposta conexão da vereadora com o crime organizado. Dezenas de informações falsas sobre as trajetórias política e pessoal da vereadora foram compartilhadas, inclusive por autoridades brasileiras, como o deputado Alberto Fraga (DEM-DF) e a desembargadora Marília Castro Neves.
O cenário de desinformação se acirrou durante o período eleitoral, marcado pela polarização entre partidos de direita e esquerda. A eleição deu lugar a uma batalha de narrativas potencializada pelas mídias sociais. Militantes de direita criticavam Marielle e suas causas, dizendo que ela merecia morrer porque "defendia bandidos". Para a esquerda, a vereadora havia se tornado um símbolo de resistência.
Na época, o presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) foi o único candidato à presidência que não se manifestou para comentar ou condenar a execução de Marielle e Anderson. Em setembro de 2018, Bolsonaro sofreu um atentado a faca. O episódio marcaria o auge da violência nas eleições.
Logo depois do atentado, dois candidatos do PSL quebraram uma placa com o nome de Marielle Franco durante um ato de campanha do candidato ao governo do Rio, Wilson Witzel (PSC). A placa em homenagem à vereadora havia sido colocada em uma das esquinas da Praça Floriano, na Cinelândia, onde fica a sede da Câmara Municipal.
Os candidatos eram Daniel Silveira e Rodrigo Amorim, que reclamaram que a esquerda se calou diante da morte de outras pessoas e da facada desferida contra Bolsonaro. Amorim compartilhou a foto com a placa quebrada nas redes sociais. A cena repercutiu na imprensa e causou revolta, mas também foi celebrada por apoiadores do PSL. Os dois ganharam projeção com o caso e foram eleitos para os cargos de deputado federal e deputado estadual, respectivamente. Depois do episódio, a imagem da placa ganhou um novo significado e começou a ser cada vez mais usada nas manifestações de ativistas de direitos humanos.
Um ano após a morte de Marielle, notícias falsas ainda circulam, como as informações de que "digitais de uma das assessoras foram encontradas no carro dos assassinos" ou que a vereadora seria "canonizada como a padroeira das minorias". Com o avanço das investigações, notícias falsas também envolveram Jair Bolsonaro e Marielle, dizendo que o presidente era o proprietário da casa "onde mora o matador de Marielle" e que isso "está na declaração de bens dele ao TSE". Elas orbitam em torno do fato de que o presidente é vizinho de Ronnie Lessa, um dos suspeitos do assassinato da vereadora e de seu motorista.
Prisão de suspeitos
As investigações policiais correram em sigilo até este ano. No dia 12 de março, o ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz e o policial militar reformado Ronnie Lessa foram presos no Rio de Janeiro sob a suspeita de terem matado Marielle e Anderson.
Lessa foi expulso da Polícia Militar em 2016, por ligações com as milícias. Ele é suspeito de ser um matador de aluguel no Rio de Janeiro e de ter envolvimento com o Escritório do Crime, grupo de extermínio ligado a milícias e contraventores.
Os policiais descobriram que Lessa monitorava a agenda de Marielle Franco e havia buscado informações sobre o deputado federal Marcelo Freixo, que já foi ameaçado de morte diversas vezes pelas milícias. Ele também havia pesquisado o local onde a vereadora morava, além de informações sobre a arma usada no crime, uma submetralhadora automática MP5.
A polícia disse que as prisões são a conclusão da primeira fase de uma investigação que ainda está longe de acabar. Falta agora saber se alguém mandou matar Marielle Franco ou se a ideia partiu do próprio Lessa.
Outros dois suspeitos do crime são o major da PM Ronald Paulo Alves Pereira, chefe da milícia de Muzema (de onde o carro usado no assassinato de Marielle partiu) e Adriano Nóbrega, chefe da milícia de Rio das Pedras e ex-policial do Batalhão de Operações Especiais (Bope), que está foragido. O primeiro chegou a ser preso na Operação Intocáveis.
Wilson Witzel, atual governador do Rio de Janeiro, disse que os acusados poderão fazer uma delação premiada. O governador disse ainda que as prisões dos acusados são "uma resposta importante que nós estamos dando para a sociedade: a elucidação de um crime bárbaro cometido contra uma parlamentar, uma mulher, no exercício de sua atividade democrática".
Segundo o general Richard Nunes, secretário de Segurança Pública do Rio, Marielle foi morta porque milicianos acreditaram que ela poderia atrapalhar os negócios ligados à grilagem de terras na zona oeste da cidade.
Para a promotora Simone Sibílio, as investigações mostram que o crime pode ter sido motivado pela repulsa de Ronnie às causas que eram defendidas por Marielle, o que também é conhecido como crime de ódio.
"É incontestável que Marielle Francisco da Silva foi sumariamente executada em razão da atuação política na defesa das causas que defendia. A barbárie praticada na noite de 14 de março de 2018 foi um golpe ao Estado Democrático de Direito", diz a denúncia.
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