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Educação - número de escolas públicas militarizadas cresce no Brasil

Alunos perfilados durante atividade escolar na Escola Militar Tiradentes, em Maceió - Beto Macário/UOL
Alunos perfilados durante atividade escolar na Escola Militar Tiradentes, em Maceió Imagem: Beto Macário/UOL

Por Carolina Cunha, da Novelo Comunicação

No início do ano letivo de 2019, quatro escolas públicas do Distrito Federal (DF) começaram a testar um novo modelo de gestão - a compartilhada com a Polícia Militar. Cada escola vai receber de 20 a 25 militares. Os professores vão continuar a cuidar da parte pedagógica, mas os militares serão responsáveis pela disciplina e segurança, em atividades como controle de entrada e saída, horários, filas e a resolução de conflitos. Os alunos também vão ter aulas de civismo, ética, Constituição Federal e ordem unida (treinamento de marchas militares e desfiles cívicos).

Na prática, as escolas militarizadas do DF vão ser policiadas internamente e exigir normas mais rígidas de comportamento. Os uniformes serão substituídos por fardas militares. Os meninos terão que usar cabelos curtos e as meninas, coque. Cabelos coloridos, barba, maquiagem e esmalte escuro serão proibidos. Mascar chiclete, falar palavrão ou se comunicar com gírias também são práticas banidas. Em algumas escolas, os alunos deverão bater continência, se apresentar diariamente em ordem-unida (formação de tropa) e haverá o hasteamento regular da bandeira e hinos nacionais.

A novidade foi apresentada pelo governador Ibaneis (MDB) no início do ano letivo e faz parte de uma tendência em todo país: a implementação de escolas cívico-militares no Brasil. Projetos de militarização de colégios, principalmente em áreas de vulnerabilidade social, ganham cada vez mais força.

Quem defende o modelo diz que a presença dos militares vai melhorar o ensino, impor a disciplina de jovens e ampliar a segurança dos alunos dentro da escola. "Não é disciplina imposta por medo. respeito", diz Mauro Oliveira, assessor especial da Secretaria de Educação do Governo do Distrito Federal.

O que são escolas cívico-militares?

Escolas cívico-militares não são Colégios Militares, mas utilizam regras e disciplinas militares. O modelo cívico-militar busca fazer uma gestão compartilhada entre a Secretaria de Educação e a de Segurança Pública. A administração da escola é assumida pela Polícia Militar, Corpo de Bombeiros ou outros órgãos oficiais de segurança, enquanto a parte pedagógica (professores e métodos de ensino) segue sob a alçada da Secretaria de Educação.

Não existe um modelo único, o formato varia de estado para estado. Em comum, o cotidiano do estudante é profundamente alterado por normas rígidas de comportamento. Os professores também devem cumprir as regras estabelecidas. Em muitos casos, acontece a reinserção no currículo escolar das disciplinas de educação moral e cívica.

A ideia dessa nova estrutura de administração de escolas vem tomando forma desde a posse do presidente Jair Bolsonaro (PSL). Durante as eleições, Bolsonaro afirmou que o formato é "um exemplo de ensino que deveria ser adotado em todas as escolas públicas do Brasil" e pretende multiplicar o modelo, fechando parcerias com as redes municipal e estadual. Ele defende que essas escolas sejam ampliadas em regiões de comunidades vulneráveis, como uma forma de desestimular jovens a ingressarem no crime organizado.

Em 2 de janeiro o governo federal assinou o decreto nº 9.465, que aprova uma nova estrutura organizacional do Ministério da Educação (MEC) e cria a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares (Secim). Ela servirá para elaborar um formato de gestão educacional e coordenar programas pedagógicos que envolvam militares e civis para ser aplicado nas regiões brasileiras. O texto afirma que caberia aos sistemas de ensino municipal e estadual aderir voluntariamente ao modelo, "atendendo, preferencialmente, escolas em situação de vulnerabilidade social".

Segundo a subsecretária da Secim, Márcia Amarílio, o novo modelo será instalado sob demanda e pretende resgatar a disciplina e a organização, principalmente nas escolas públicas de maior vulnerabilidade social. "O conteúdo que é aplicado a essas escolas cívico-militares são voltados ao civismo, ao patriotismo, à hierarquia, à disciplina, à ordem unida, ou seja, mostram como pensar no coletivo", destaca a subsecretária. "Acreditamos que esse modelo, o de educar com esses valores, civismo, patriotismo, faz com que o cidadão passe a ter consciência do seu papel dentro da sociedade. E é isso que faz mudar uma nação."

Experiências brasileiras

Atualmente existem 120 escolas militarizadas em 17 estados do Brasil. Quase metade delas está em Goiás, estado que lidera o número de escolas desse tipo no país. Em 2013, haviam oito escolas militarizadas goianas. Em 2019, já são mais de 70.

Inicialmente, a militarização das escolas estaduais goianas foi justificada pelo governador Marconi Perillo (PSDB) como uma medida para atenuar a violência na escola em áreas de periferia. Com o tempo, o governo destaca que a experiência reduziu ocorrências criminais a zero e obteve melhora no desempenho escolar.

Para a Secretaria de Educação, o modelo ajudou a melhorar a qualidade do ensino de uma forma geral, como o aumento do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), das notas do ENEM e da aprovação em universidades. Hoje as cinco melhores escolas públicas do Goiás são administradas pela PM.

Em Goiás, os militares substituíram a secretaria e a direção do colégio - o diretor é um policial. As direções civis ficaram na função de vice-diretores. O processo seletivo é feito por prova ou por sorteio. Partes das vagas dos colégios foram reservadas para filhos de policiais e bombeiros.

Além de militares armados estarem presentes nas escolas, em algumas unidades foi implantado um sistema de monitoramento com câmeras em cada sala. Os alunos são revistados na entrada e recebem infrações em caso de atraso. Ao começo de cada aula, a classe bate continência para o professor e pede autorização para se sentar.

Os boletins são monitorados e são distribuídas honrarias a quem tem bom comportamento e aos alunos que atingem médias acima de 8,5 pontos nas matérias. A medida visa estimular o reconhecimento do bom comportamento.

O Centro de Comando de Ensino Militar de Goiás tem um regimento com 276 artigos que precisam ser seguidos por alunos e professores. Entre as infrações estão o uso de "barba ou bigode por fazer e costeleta fora do padrão", óculos com "cores esdrúxulas", o penteado "com mechas caídas", "tingir o cabelo de "forma extravagante" e "contato físico que denote envolvimento de cunho amoroso".

Apesar da rigidez, as vagas nas escolas goianas são disputadas pelos pais. "É um modelo valorizado pela comunidade não porque a rigidez seja a nossa atividade-fim, mas sim instrumento que potencializa o ensino", diz Anésio Barbosa da Cruz Júnior, comandante de Ensino da Polícia Militar de Goiás. Segundo a PM, os conteúdos são os mesmos dos apresentados nas escolas convencionais.

Na Bahia, o modelo foi batizado de Vetor Disciplinar, no qual as escolas seguem geridas pelas prefeituras e recebem policiais militares da reserva para atuar no âmbito disciplinar. O governo diz que a expectativa é formar melhores cidadãos. Neste caso, o custo para implantação do modelo fica a cargo dos municípios. Hoje existem 17 colégios militarizados no estado.

No Norte, destacam-se os estados do Amazonas e Roraima. No primeiro, já são oito as escolas militarizadas. A experiência de êxito mais conhecida é a do Colégio Waldocke Fricke de Lyra, em Manaus (AM). Localizado em um bairro perigoso e com alto e crescente índice de criminalidade nas escolas, o colégio permanecia nas últimas posições em relação ao IDEB. Após a militarização, atingiu médias maiores no desempenho seguinte.

A escola Waldocke Fricke de Lyra também se destacou por uma polêmica. Durante as últimas eleições, os alunos foram filmados em uma formação militar, saudando Jair Bolsonaro como a "salvação da nação". O vídeo foi distribuído nas redes sociais pelo político do PSL. A iniciativa do colégio foi classificada de "doutrinação nazifascista de crianças e adolescentes" pelo presidente do Conselho do Amazonas de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Glen Wilde Freitas. Segundo ele, existem relatos de diversas expulsões de alunos que reclamaram da rigidez disciplinar.

Críticas ao modelo de escolas militarizadas

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação se posicionou de forma contrária à militarização das escolas, argumentando que o enfrentamento à violência está associado apenas ao uso de técnicas repressivas que ignoram os reais problemas enfrentados na rede pública de ensino.

A entidade defende que as escolas podem ter mais investimentos em segurança, sem precisar da militarização da gestão. "A militarização da educação civil não pode ser a resposta de um governo democrático aos problemas da educação (indisciplina, evasão, violência no ambiente escolar, dentre outros) que são reais, mas para os quais existem outras e melhores soluções", diz um comunicado da Campanha.

As entidades também argumentam que as avaliações positivas dos colégios militares são supervalorizadas, porque a maioria das escolas com melhores notas no IDEB não são militares. Elas se caracterizam por serem bem administradas, com valorização dos profissionais e participação social.

Para a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), as escolas militarizadas focam na disciplina, mas não seguem o modelo dos "verdadeiros" Colégios Militares, mantidos pelo Exército. Esses investem em infraestrutura, materiais disponíveis e bons salários para professores. Atualmente, existem 13 colégios militares no Brasil, sendo que o valor gasto com cada aluno é três vezes maior do que com quem estuda em escola pública regular.

A entidade critica ainda a obrigatoriedade de cobrança de taxas em algumas escolas, norma que fere o direito ao ensino gratuito estabelecido pela Constituição. Os princípios constitucionais da educação definem uma escola pública, gratuita, democrática, com igualdade de condições de acesso e permanência. Com cobranças de taxas, transfere-se um custo que estava nas mãos do Estado para os pais.

Em Goiás, 46 escolas militarizadas cobram a compra do uniforme militar (que custa entre R$ 250 e R$ 350) e o pagamento de uma taxa mensal por mês. No colégio Waldermar Mundim, por exemplo, a taxa é de R$ 50 reais por mês. No Amazonas, o Ministério Público recomendou que os diretores das escolas militarizadas cessassem a cobrança de taxas de matrícula, rematrícula, aquisição de material, uniforme escolar ou de qualquer natureza.

Outro problema é que as instituições de ensino militarizadas saem do amparo das secretarias da educação para as de segurança pública. A Constituição Federal e a legislação educacional brasileira determinam que a educação básica é de responsabilidade prioritária das pastas de educação estaduais e municipais, e não de outros órgãos. Na prática, deixam de seguir as regras da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

"Tal movimento representa um desvio de função da política e dos órgãos militares em prover esse serviço público, inclusive considerando que não têm dado conta de cumprir com sua função primária, na segurança pública", afirma Catarina de Almeida Santos, professora da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Comitê DF da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação.

Outra crítica é em relação à reserva de vagas na escola para dependentes dos militares, considerada uma apropriação indevida de um espaço público por interesse corporativo, e os processos de seleção para ingresso nas escolas, que tornam a instituição menos acessível a alunos com dificuldade de aprendizado.

Disciplina e pedagogia

A disciplina é um mecanismo utilizado para garantir o controle dos indivíduos que compõem determinada sociedade. No trabalho pedagógico, a disciplina também pode ser entendida como um comportamento adequado ao ambiente escolar ou um meio para que se conviva com o outro (adotando regras e princípios). Dessa forma, a disciplina pode envolver direitos, responsabilidade e respeito recíprocos.

O filósofo Michel Foucault (1926-1984) estudou e teorizou o fenômeno das "sociedades disciplinares", uma forma de organização social em que o controle e a disciplina ganham destaque. Foucault observou que a instituição educacional aplicou esses conceitos em um número elevado de pessoas no final do século 19 e no início do século 20, com o intuito de tornar as pessoas produtivas e "mansas".

Para Foucault, a escola desse período se configura como uma das "instituições de sequestro", assim como o hospital, o quartel e a prisão. Ela captura as pessoas em local e tempo determinados, para melhor disciplinamento dos corpos. As crianças seriam adestradas desde cedo, com sistemas de recompensa e punição, visando estabelecer uma normatização com objetivos de criar um sujeito controlado.

Num modelo autoritário de escola, existe um reforço para o aluno ser obediente. Foucault concluiu que a instituição escolar possibilitou, através da disciplina, modificar o corpo e a mente do aluno - suas condutas, maneiras de vestir, comportamentos e pensamentos.

Alguns educadores acreditam que a presença de policiais nas escolas militarizadas brasileiras e o uso de regras rígidas demais podem afetar a capacidade cognitiva dos estudantes. Para Catarina de Almeida, "dando aula ou vigiando a escola, a presença da polícia não pode ser benéfica para o processo educativo. Não é benéfico estudar com medo, estudar sendo vigiado".

Ela entende que existe uma linha tênue entre disciplina e autoritarismo - a imposição da vontade pela ameaça, medo e coação. A disciplina não deveria ser associada ao silêncio, medo, ameaça ou a situações de constrangimento. A preocupação desses educadores é com o impacto pedagógico que o controle e a vigilância dos alunos e professores possam ter, como o despreparo educacional dos policiais e a possibilidade de "excessos", sem possuírem conhecimento científico/pedagógico para exercer a função.

Outro receio é que os militares possam substituir o debate de ideias e o pensamento crítico pela coerção. "Não se pode negar que há um desafio na educação brasileira. Contudo, não é com polícia que se resolve. Polícia tem de ser parte, de forma comunitária, com ronda e presença no território. Educação se resolve com muito investimento, sem muros, com um plano que desenvolva em cada estudante os seus sonhos e os prepare para a vida e não apenas para uma prova", diz Max Maciel, pedagogo de Brasília.

Maciel diz que é preciso entender o contexto social de cada escola e aluno. Muitos professores dizem que as dificuldades de disciplina e o baixo desempenho escolar são motivados por diversas causas como estrutura familiar desequilibrada, consumo de drogas, ausência de valores morais e éticos, carência afetiva por parte dos filhos, omissão e falta de incentivo dos pais, exclusão social, falta de perspectivas de futuro, influência negativa de grupos e da mídia, entre outros aspectos.

Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, avalia que a militarização esconde um preconceito social, no qual a juventude de bairros periféricos é tratada como caso de polícia. "Nenhuma escola militarizada atende às classes médias: todas estão em região de periferia e em situação de violência. O que se quer não é educar, mas domar os alunos", afirmou.

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