Questões indígenas - Ainda não se sabe quem e quantos são os índios brasileiros
Não são poucos os problemas relacionados à questão indígena no Brasil de hoje. Na semana em que se comemora o dia do índio, é importante nos lembrarmos de alguns deles. Afinal, para isso teriam sido criadas essas datas comemorativas, mais do que para os inocentes festejos das crianças do primeiro ciclo do ensino fundamental.
No que se refere ao índio, em primeiro lugar, chama a atenção a incerteza e o desconhecimento que paira sobre ele. Sem falar na visão idealizada que se tem dos indígenas nas metrópoles, ou da imagem preconceituosa que prevalece nas regiões onde eles e as populações sertanejas se confrontam, hoje não se tem certeza sequer do número de índios existentes no país.
As estimativas - não existe um censo indígena - oscilam entre 350 mil e 700 mil indivíduos, reunidos em cerca de 200 sociedades, além de mais ou menos 60 grupos isolados, nunca contatados pelo homem branco.
Fontes e critérios
As informações variam tanto, pois provêm de fontes diversas, sejam governamentais (IBGE, Funai, Funasa ou não-governamentais, como a Igreja católica (Conselho Indigenista Missionário, Cimi) ou o Instituto Socioambiental (Isa), cujos critérios nem sempre coincidem. Há números contraditórios até numa única e mesma página da internet, como pode constatar quem fizer uma visita ao site da Fundação Nacional do Índio - Funai.
Quando se fala em critérios que variam, porém, é bom deixar claro que não se fala apenas em termos quantitativos. Também se deve levar em conta a questão qualitativa, lembrando que "índio" é uma designação genérica e errônea criada pelos europeus que aqui chegaram no século 16 para designar os povos autóctones ou aborígines americanos.
E definir quem é o índio, sua(s) etnia(s) e cultura(s), é de fundamental importância, uma vez que isso vai estabelecer sua condição perante as leis brasileiras - a que eles também estão submetidos.
Da legislação indígena em vigor, além do capítulo 8 ("Dos índios"), título 8 ("Da ordem social"), da Constituição Federal, o ordenamento jurídico principal é o Estatuto do Índio, Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973. A definição que ela dá ao índio é semelhante à que deu o antropólogo Darcy Ribeiro:
"(...) aquela parcela da população brasileira que apresenta problemas de inadaptação à sociedade brasileira, motivados pela conservação de costumes, hábitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradição pré-colombiana. Ou, ainda mais amplamente: índio é todo o indivíduo reconhecido como membro por uma comunidade pré-colombiana que se identifica etnicamente diversa da nacional e é considerada indígena pela população brasileira com quem está em contato".
Tutela estatal
O Estado brasileiro assumiu o papel de responsável pela proteção da integridade física e cultural dos diversos povos indígenas que vivem em nosso território. É orientado pela noção de tutela, que define os índios como relativamente incapazes de exercerem seus direitos civis. Mas o próprio texto do Estatuto do Índio tende a dificultar o acesso do indígena à justiça.
Por exemplo, só têm direito de recorrer aos tribunais brasileiros os índios que satisfaçam a quatro exigências expressas no artigo 9 do Estatuto: 1) ter pelo menos 21 anos; 2) conhecer a língua portuguesa; 3) qualificar-se para uma atividade útil na comunidade nacional; 4) compreender os hábitos e costumes da comunidade nacional.
Se não houvesse a intenção de dificultar aos indígenas o acesso à proteção legal, poder-se-ia facilmente, como vários países o fazem, prever a colaboração de intérpretes e dispensar os índios da exigência de conhecer a língua oficial da população brasileira.
Conflitos insolúveis?
Outra questão grave se refere às terras indígenas. Atualmente, existem 554 reservas reconhecidas pela Funai, que ocupam uma área total de 946.452 km2, que corresponde a aproximadamente 11,12% do território brasileiro e é equivalente à soma dos territórios da França e da Grã-Bretanha. A demarcação, o registro e a homologação dessas terras, porém, ainda está longe de chegar à conclusão.
Dados do Cimi, de 2004, revelam que providências não haviam sido tomadas nesse sentido em 226 dessas reservas. Além disso, a questão da terra é uma fonte perene de conflitos entre as populações índias e as empresas ou populações rurais que se interessam em explorar os territórios indígenas e seus recursos (madeiras e minérios, por exemplo).
As soluções para esses conflitos não são difíceis somente na prática, mas até na teoria, uma vez que não há consenso sobre diversos elementos envolvidos, como a extensão das reservas (seriam maiores do que devem ser?), a preservação das culturas indígenas (ela é efetivamente possível?), a integração entre os índios as comunidades que lhes são vizinhas (como vencer o preconceito e a hostilidade?).
Funai
Em meio a tudo isso, você pode estar se perguntando o que é e o que faz a Fundação Nacional do Índio - Funai - entidade vinculada ao Ministério da Justiça, que foi fundada em 1967, em substituição ao antigo Serviço de Proteção ao Índio, que datava de 1910.
Entre as várias tarefas de sua responsabilidade, podem-se citar o próprio processo de reconhecimento e regulamentação jurídica das terras indígenas, bem como a organização do atendimento à saúde dos índios; a formulação de políticas educacionais específicas e diferenciadas; a proteção e defesa de grupos ameaçados por frentes de expansão econômica, como madeireiros, posseiros, garimpeiros, etc.
O desempenho da Funai é, contudo, um alvo constante críticas. Em geral, grupos missionários religiosos e ONGs questionam o monopólio estatal dos cuidados com o índio, em função dos problemas crônicos que o Estado brasileiro demonstra diante de diversas outras questões sociais: sua incapacidade de dar respostas eficientes e rápidas às ações sob sua responsabilidade.
Novo Estatuto, novos índios
A política indigenista oficial deve passar por mudanças importantes. Já ocorre uma grande discussão em torno de um novo Estatuto dos Povos Indígenas, que trataria, entre outras medidas, de implementar e regulamentar modificações já definidas na Constituição de 1988. Entre outros temas polêmicos, o novo estatuto levanta a questão do fim da tutela dos índios pelo Estado, o que terá certamente implicações importantes para o destino dos índios e dos grupos que procuram defendê-los.
Aliás, é interessante lembrar também que, nos últimos anos, o critério da auto-identificação étnica vem sendo o mais amplamente aceito pelos estudiosos da temática indígena. Com isso, tem aumentado o número de populações que passam a reivindicar pública e oficialmente a condição de indígenas no Brasil.
O fenômeno, também complexo e polêmico, tem sido denominado como "identidades emergentes", ou "etnogênese" e se caracteriza basicamente por três elementos: 1) aparece, quase sempre, ligado a pleitos territoriais; 2) resulta de complexos processos históricos regionais de relacionamento entre índios e não-índios; e 3) os povos que adotam essas identidades não possuem traços claramente distintivos em relação às populações não-indígenas das regiões onde vivem.
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