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Religião - o que o burquíni tem a ver com Estado laico e laicismo?

Mulher muçulmana leva seus filhos para nadarem em praia de Marselha, na França - 17.ago.2016/Reuters
Mulher muçulmana leva seus filhos para nadarem em praia de Marselha, na França Imagem: 17.ago.2016/Reuters

Por Carolina Cunha, da Novelo Comunicação

Pontos-chave

  • A proibição do uso do burquíni em praias francesas tem sido defendida na França a partir de dois argumentos: a defesa do Estado laico e a defesa da libertação do corpo das mulheres.
     
  • Um Estado laico é aquele que não possui uma religião oficial e pratica a separação jurídica e política entre Estado e religião. Ou seja, defende a autonomia e a não interferência de crenças religiosas ou espirituais nas instituições públicas.
     
  • Existem dois tipos de laicidade: a neutra e a pluriconfessional. O Estado laico neutro veta todo e qualquer símbolo e discursos religiosos nos poderes e instituições públicas. Já a laicidade pluriconfessional traz o respeito à diversidade religiosa e brechas para que elas influenciem em doutrinas do Estado.
     
  • A laicidade pluriconfessional é mais próxima do que é praticado no Brasil hoje. O Brasil é um Estado laico e a Constituição Federal garante a liberdade de pensamento e a liberdade religiosa como um direito constitucional.

Desde julho de 2016, mais de dez cidades da França decretaram a proibição do uso do burquíni em suas praias. O burquíni é o traje de banho usado por mulheres muçulmanas e que cobre o corpo da cabeça aos pés. Ele surgiu recentemente na moda e hoje representa uma opção para mulheres muçulmanas que não se sentem confortáveis em exibir partes do corpo na praia ou que são proibidas de fazê-lo pela religião.

A proibição dessas vestimentas em espaços públicos tem sido defendida na França a partir de dois argumentos: a defesa do Estado laico e a defesa da libertação do corpo das mulheres.
O primeiro-ministro francês, Manuel Valls, declarou que a peça de vestuário não é compatível com os valores da França. Segundo ele, seu uso afronta a laicidade do país. “As praias, como qualquer espaço público, têm de estar livres de qualquer reivindicação religiosa”.

Já a política Marine Le Pen, Líder da Frente Nacional, partido de extrema-direita francês, declarou que as peças de roupa não fazem parte da cultura local.  "É uma questão de laicismo republicano, de ordem pública, certamente; mas, além disso, trata-se da essência da França: a França não aprisiona o corpo da mulher, não esconde metade da população sob o pretexto errado e odioso do medo de que a outra metade caia em tentação."

A decisão de vários municípios de proibir o uso da peça islâmica nas praias francesas provocou uma forte polêmica na França. Os véus mulçumanos já são proibidos em escolas públicas francesas, primárias e secundárias, desde 2004. Agora políticos querem estender a proibição para as universidades. A deputada francesa Nadine Morano sugeriu até que as mulheres não francesas que reincidirem na quebra da lei do burquíni sejam expulsas do país.

Críticos das medidas proibitivas alegam que elas são um reflexo da crescente islamofobia no país, com a radicalização do discurso de que o islamismo e a presença de muçulmanos imigrantes na França “trazem problemas”. A questão se agravou com a forte tensão provocada pelos recentes ataques terroristas na França.

Também se discute a visão etnocêntrica dos franceses. Etnocentrismo é um conceito antropológico que ocorre quando um indivíduo ou grupo de pessoas discrimina o outro, julgando-se melhor ou pior, seja por causa de sua condição social, pelos diferentes hábitos ou manias, por sua forma de se vestir, ou pela sua cultura.

Além disso, apesar da proibição usar um discurso sobre a libertação do corpo, ao impor uma regra de vestimenta para a mulher frequentar o espaço público, as mulheres estariam sendo discriminadas e seus direitos humanos estariam sendo violados. Escolher o que vai vestir sem interferência do Estado seria um direito humano básico.

O Estado laico, laicismo e a liberdade religiosa

O argumento de muitos políticos franceses que defendem a proibição de vestimentas muçulmanas é a defesa do Estado laico, considerado um dos pilares da civilização francesa. A questão da laicidade gera debates acalorados no país.

Em 2013, a França adotou nas escolas públicas a “Carta da Laicidade”, que proíbe o uso do véu islâmico nas escolas, da estrela de Davi ou da cruz, além de proibir a ausência de alunos durante festas religiosas. Na ocasião, Vicent Peillon, o então ministro da educação, declarou: “a laicidade é uma batalha que não opõe uns aos outros, mas uma batalha contra aqueles que querem opor uns aos outros".

Um Estado laico, secular ou não confessional é aquele que não possui uma religião oficial e pratica a separação jurídica e política entre Estado e religião. Ou seja, defende a autonomia e a não interferência de crenças religiosas ou espirituais nas instituições públicas.

Esse princípio foi um ponto central da visão política que surgiu após a Idade Moderna. A Revolução Francesa trouxe o conceito de liberdade como um direito dos cidadãos e um dever do Estado.

No Ocidente, historicamente a Igreja Católica e o Estado exerciam um regime de união, sendo a religião um elemento central e legitimador da ordem social. Na Idade Média, por exemplo, a religião era a principal esfera da vida humana e exercia grande influência na ordem política. Tanto que nesse período aconteceu a Inquisição, uma espécie de tribunal religioso criado na Idade Média para condenar todos aqueles que eram contra os dogmas pregados pela Igreja.

É a partir do século 18 que o Estado desvincula-se da Igreja e passa a adotar a neutralidade com questões religiosas. Em um Estado de Direito, o poder emana do povo, ou seja, é o povo que elege seus representantes. Além disso, o poder é regulado pelo direito. O Estado adota um conjunto de normas, um documento escrito que enumera e limita os poderes políticos e assegura os direitos fundamentais e individuais dos cidadãos.

O Estado teocrático ocorre quando há uma mistura de Direito com Religião, em que o líder do Estado é ao mesmo tempo um líder religioso e que pode criar leis a partir de uma visão espiritual. O Estado adota uma religião oficial e todos são orientados a seguir essa crença.

Exemplos atuais de regimes desse tipo são o Irã, país controlado pelos aiatolás, líderes religiosos islâmicos, e o Vaticano, regido pela Igreja Católica e tendo como autoridade máxima o Papa.

Mas para que existe o princípio de laicidade? A laicidade é um dispositivo de proteção à livre consciência e expressão de todas as crenças, de modo a garantir o reconhecimento da diversidade social em sociedades democráticas. Esse modelo surge pela necessidade de garantir e respeitar os direitos individuais, dando ao Estado a autonomia exclusiva para sua administração política soberana.

Existem dois tipos de laicidade: a neutra e a pluriconfessional.

O Estado francês pode ser considerado um exemplo de Estado laico neutro, porque veta todo e qualquer símbolo e discursos religiosos nos poderes e instituições públicas. Existem correntes de pensamento que consideram que a França está alinhada ao laicismo, um tipo de ideologia que prega o racionalismo e a neutralidade total. Em seu extremo, o laicismo corre o perigo de se tornar uma ideologia totalitária, ao não permitir nenhum aspecto religioso na vida cultural da sociedade. Na Coreia do Norte, por exemplo, o regime socialista chegou a proibir a prática de qualquer religião e a vetar livros religiosos.

Embora apele para a defesa da laicidade, a proibição do uso do burquíni na França pode ser contraditória. Isso porque o princípio fundamental do Estado laico é a liberdade religiosa, ele assegura que todo cidadão tem o direito de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha. Assegura ainda o direito de não ter crença, como o direito de ser ateu.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948 e reconhece a liberdade religiosa como um direito humano. O artigo 18 diz: “tal direito inclui a liberdade para mudar de religião ou crença, bem como a liberdade para manifestar, de forma particular ou em comum, de forma pública ou privada, sua religião ou crença no ensino, nas práticas, no culto e na observância dos ritos”.

Desta forma, o Estado não pode restringir ou discriminar as convicções religiosas, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto, ao uso de símbolos religiosos e a suas liturgias.

Já a laicidade pluriconfessional traz o respeito à diversidade religiosa e brechas para que elas influenciem em doutrinas do Estado. No entanto, essa influência deve respeitar princípios básicos como a liberdade religiosa e a igualdade de representatividade de diferentes grupos sociais dentro da esfera pública. Ou seja, o Estado não pode ter condutas que criem barreiras para a coexistência em condições igualitárias de todas as religiões cultuadas no país.

Oriunda dos Estados Unidos, a laicidade pluriconfessional é mais próxima do que é praticado no Brasil hoje. O Brasil é um Estado laico e a Constituição Federal garante a liberdade de pensamento e a liberdade religiosa como um direito constitucional.

Apesar disso, o Brasil não pratica em todas as esferas o laicismo. Isso porque o Estado brasileiro reconhece a possibilidade de incluir discursos religiosos na estrutura política. Na carta constituinte de 1988, lê-se: “promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”. O Estado brasileiro também autoriza o ensino religioso em algumas escolas públicas e tolera a existência de símbolos religiosos em instituições públicas, como escolas públicas, parlamentos e tribunais de justiça.

Embora o Brasil seja considerado um Estado laico, nos últimos anos a interferência de grupos religiosos na política brasileira aumentou drasticamente e acendeu um alerta sobre a questão da separação entre religião e Estado. O que chama a atenção é o poder da chamada bancada evangélica, com representes eleitos democraticamente e cada vez mais fortes nas eleições. Em 2015, o grupo contava com um número recorde de 78 representantes no Congresso.

O problema é que, ao propor leis sob um viés religioso, políticos podem ameaçar a liberdade dos direitos individuais, impor a visão moral de uma determinada religião sobre outras e barrar projetos que poderiam ter o respaldo do Poder Judiciário.

Várias das propostas da bancada podem ter impacto considerável no dia a dia dos brasileiros. São exemplos o Estatuto da Família, que discute se um casal pode ser formado apenas por homem e mulher (dificultando o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo e até o direito à adoção de crianças) e a proposta do deputado Marcos Feliciano (PSC-SP) de criar um projeto de lei que busca incluir o ensino do criacionismo nas escolas, ou seja, a crença na criação do homem a partir de Deus.

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