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Conflitos fundiários - STF deve julgar os critérios de reconhecimento de terras quilombolas

Pedro Ladeira/Folhapress
Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

Por Carolina Cunha, da Novelo Comunicação

A palavra “quilombo” é africana e tem origem no povo banto. No Brasil colônia, os quilombos ou “mocambos” eram comunidades livres formadas por negros escravizados em busca de liberdade. Para viverem longe do perigo, geralmente escolhiam lugares de difícil acesso. Após a Abolição da Escravidão (1888), o processo de “aquilombamento” cessou, mas seus descendentes continuaram nas terras, em situação precária de posse.

Os quilombolas são considerados populações tradicionais do Brasil, formadas predominantemente por descendentes de escravos. Muitas dessas terras são remanescentes de quilombos. Elas também podem ter sido obtidas por compra efetuada por ex-escravos,     doação ou como serviços prestados ao Estado (como combatentes da Guerra do Paraguai).  

Hoje as comunidades quilombolas estão distribuídas por todas as regiões do país. A maior parte vive na zona rural, em áreas onde a agricultura familiar e de subsistência predomina.  Mas também existem comunidades urbanas, como o quilombo de Sacompã, na cidade do Rio de Janeiro (RJ).

O povo quilombola é reconhecido por seu rico patrimônio imaterial. Seu modo de vida reflete técnicas de agricultura familiar, conhecimentos de plantas medicinais e diversas manifestações culturais como cultos, festas, danças e cantos. Nas comunidades mais isoladas, a língua falada ainda conserva termos africanos.

A questão da demarcação das terras

O reconhecimento da existência dos povos quilombolas é recente, aconteceu com a promulgação da Constituição Federal de 1988, quando o Estado brasileiro reconheceu a sua existência e lhes garantiu o direto à propriedade de suas terras. No caso dos quilombolas, a titulação da terra é coletiva – pertence não a uma pessoa física, mas a uma comunidade.

Mas quem é responsável por identificar e delimitar esses territórios? O Estado é responsável pela emissão dos títulos. A competência para titulação territorial já pertenceu à Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura e que atua na preservação da cultura afro-brasileira. Com o Decreto 4.887 de 2003, essa competência passou a ser do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

O primeiro passo para o processo de titulação é a certificação da Fundação Palmares como uma terra tradicionalmente ocupada por quilombolas. Depois, cabe ao Incra realizar os trabalhos de identificação, reconhecimento, delimitação e titulação.

Além de terem a segurança que a propriedade pertence às famílias, a titulação permite que as comunidades quilombolas sejam atendidas por programas sociais do Governo Federal, o que possibilita uma maior proteção social e acesso a direitos básicos.

Conflitos de terras: ruralistas e o Movimento Quilombola

Donos de áreas rurais criticam o modo como as demarcações quilombolas são realizadas hoje e temem que proprietários corram o risco de perder terras escrituradas. Além disso, reclamam que o atual processo de titularização de terras quilombolas dá margem para fraudes.

Já as comunidades quilombolas reivindicam o cumprimento da Constituição Federal e criticam a lentidão na demarcação pelo Incra. Muitas comunidades reclamam que apenas uma minoria dos grupos conseguiu os títulos e que diversos processos se arrastam há mais de uma década.

De fato, a diferença entre o número de certificações emitidos pela Fundação Palmares e o de regulamentação pelo Incra revela a morosidade do processo. Desde o início de suas atividades, em 1988, a fundação certificou 2.962 comunidades. Atualmente existem 220 títulos emitidos pelo Incra.

Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) a falta de garantia da terra leva à judialização de impasses e acirra os conflitos no campo.  Durante o processo de demarcação, muitas vezes a tensão termina em conflito armado. Em 2017, a entidade registrou 14 assassinatos de lideranças quilombolas em disputas de território.  

O julgamento do STF: quem pode ser considerado quilombola?

A tensão entre quilombolas e ruralistas expõe divergências quanto à interpretação legal do conceito de quilombo. Em 2017, O Supremo Tribunal Federal (STF) realizará um polêmico julgamento que pode mudar a política pública voltada para as comunidades quilombolas.

Movida pelo partido Democratas (DEM), a ADI 3239 chegou ao Supremo em 2012 e questiona o processo de certificação e titulação de terras estabelecido pelo Decreto 4887/03. A questão central do julgamento é avaliar se o Decreto presidencial é inconstitucional.

Em 2003, o Decreto 4887, realizado pelo então presidente Lula, estabelece que a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante a autodefinição da própria comunidade. Desde então, a decisão é alvo de discussões políticas.

O DEM sustenta que o Decreto 4887 seria ilegal por conta da inexistência de uma lei prévia que confira sua validade. Diz que para valer como uma norma constitucional, a regra deveria ter sido originada no Congresso Nacional.

A ação também coloca em dúvida a possibilidade de as próprias comunidades se declararem como remanescentes de quilombos. O partido argumenta que essa legislação abre precedentes para que qualquer população solicite o registro, mesmo sem possuir vínculos reais com os quilombolas.

Para a Sociedade Rural Brasileira, o decreto provoca uma insegurança jurídica que afrontaria o direito da propriedade privada, criando uma nova modalidade de desapropriação de terras particulares.

Quem é contra a anulação do Decreto 4887 entende que sua extinção provocará um verdadeiro retrocesso de direitos e que inviabilizaria a demarcação de propriedades quilombolas. Para a Fundação Palmares, a norma precisa ser mantida porque já existe um rigor no processo de certificação e na titulação das terras, o que dificulta a possibilidade de fraude.  

Este ano, o julgamento já foi adiado duas vezes: em agosto e outubro, devido à ausência de ministros do STF por problemas de saúde. A polêmica votação deve acontecer no mês de novembro.

A polêmica da autodeclaração

A Constituição de 1988 determina que "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos".

O DEM argumenta que o decreto 4887 distorce o texto constitucional já que a Constituição exige a comprovação "da remanescência - e não da descendência - das comunidades dos quilombos para que fossem emitidos os títulos". O partido entende que as comunidades devem provar que são historicamente oriundas de grupos de escravos fugidos.

A Associação Brasileira de Antropologia (Aba) divulgou um documento defendendo que a expressão remanescente de quilombo não se referia apenas a grupos "constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados", mas também a comunidades "que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar". Ou seja, o termo quilombo também pode ser referir a     comunidades negras tradicionais que possuem forte relação histórica com o espaço onde vivem.

Antropólogos também defendem que muitos grupos possuem dificuldades de provar que descendem de quilombolas. Isso porque algumas comunidades preservaram de maneira muito clara suas tradições, o que facilita um rápido reconhecimento oficial.  Outras possuem pouco ou nenhum vestígio da cultura dos antepassados.  Nesse sentido, a autodeclaração seria um caminho mais justo.

O DEM entende que a autodeclaração seria um critério subjetivo que não deveria servir para a outorga de direitos pelo Estado. Os defensores do critério argumentam que não basta a “mera” intenção de vontade do interessado em ter o direito à terra  - ele passa por uma rigorosa análise que leva em conta aspectos históricos e antropológicos como o estudo da  identidade coletiva,  o levantamento de mapas detalhados da região e a árvore genealógica das famílias.

Existe ainda a interpretação de que a Constituição impõe ao Estado o dever de proteger as manifestações das culturas afro-brasileiras, demonstrando preocupação com a preservação dos valores culturais e do próprio modo de vida dessas comunidades.

A questão do marco temporal

A Bancada Ruralista no Congresso também defende o estabelecimento de um “marco temporal” para o reconhecimento da titulação dos quilombolas. Desta forma, apenas comunidades na posse de seus territórios em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, teriam direito à titulação.

Quilombolas têm protestado contra o estabelecimento de um marco temporal para as demarcações. Segundo o Instituto Sócio-Ambiental (ISA), este ponto pode prejudicar várias comunidades existentes no país que estão em processo de titulação.

Por esse princípio, terras que estivessem sem quilombolas nessa data não poderiam ser reivindicadas. Isso prejudicaria as comunidades que alegam terem sido expulsas de seus territórios originais antes de 1988.

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