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Arte contemporânea - o ataque a exposições no Brasil e a liberdade de expressão

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Exposição Queermuseu, que foi cancelada pelo Santander Cultural

Por Carolina Cunha, da Novelo Comunicação

Em setembro, denúncias nas redes sociais diziam que uma exposição de arte contemporânea em Porto Alegre fazia apologia à pedofilia, zoofilia e promovia a blasfêmia contra símbolos católicos. Após uma série de protestos, a exibição Queermuseu foi cancelada pelo Santander Cultural. Ela contava com mais de 270 obras que traziam a diversidade sexual e de gênero como tema transversal. Pela primeira vez, uma mostra LGBT ocupava um museu de grande porte brasileiro. Ela fechou um mês antes do previsto.

Muitas imagens da mostra foram consideradas ofensivas por grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL). As obras mais compartilhadas na internet foram uma tela de Jesus Cristo com vários braços (obra de Fernando Baril, que faz apologia ao deus indiano Shiva), telas com as frases "Criança viada travesti da lambada" e "Criança viada deusa das águas" (obra de Bia Leite que faz referência a um meme da internet) e a obra “Cena de interior II”, de Adriana Varejão, criticada por trazer uma pessoa tendo relação sexual com um animal.

Em nota, o Santander Cultural afirma ter entendido que as obras "desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo”. Quase um mês depois, o Museu de Arte do Rio (MAR) cancelou a ida da exposição ao Rio de Janeiro. O Ministério Público foi acionado e concluir que exposição não fazia apologia à pedofilia e recomendou que são os pais de crianças a adolescentes que devem decidir se seus filhos podem frequentar museus sem prévia classificação etária.

O assunto também foi parar no Congresso Nacional. Em outubro, Gaudêncio Fidelis, o curador da mostra Queermuseu, foi convocado para depor na CPI dos maus-tratos a crianças e adolescentes, presidida pelo senador evangélico Magno Malta (PR).  O curador não compareceu, mas ele denunciou a tentativa de criminalização da arte. “Fica bem claro a partir de agora que isso é um processo forte de criminalização da arte, dos artistas e que nós teremos que enfrentar isso com bastante veemência”, disse Fidelis.

Logo em seguida, outro episódio causou repercussão. Em São Paulo, o artista Wagner Schwartz foi atacado nas redes sociais por permitir o contato de uma criança quando estava nu em performance no Museu de Arte Moderna (MAM). A criança havia tocado no pé dele. Movimentos sociais e políticos de direita acusaram a interação de pedofilia e erotização infantil.

Schwartz fazia uma leitura interpretativa da obra “Bicho”, da artista Lygia Clark - desenvolvida a partir de esculturas que devem ser manipuladas pelos espectadores para se metamorfosear em diferentes formas. O artista se apresenta nu, junto de uma réplica da escultura de Lygia e permite a interação do público em diferentes partes do seu corpo. Dessa forma, ele se transforma numa escultura performática que precisa da comunicação com o público para acontecer.

Os defensores do artista alegam que a performance não teve conteúdo sexual e apresentava apenas a nudez de uma pessoa. Criticam ainda os movimentos que buscam espalhar interpretações falsas, praticar crime de ódio e atentar contra a honra e a reputação do artista ao chama-lo de pedófilo.

Em nota, o MAM diz que a sala estava sinalizada sobre o teor da apresentação e a criança estava supervisionada pela mãe. “A sala estava devidamente sinalizada sobre o teor da apresentação, incluindo a nudez artística, seguindo o procedimento regularmente adotado pela instituição de informar os visitantes quanto a temas sensíveis”. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os espaços devem indicar a restrição de idade sobre o conteúdo exibido. 

No início de outubro, a exposição do artista Pedro Moraleida também foi alvo de protestos em Belo Horizonte. Grupos de religiosos e políticos da bancada evangélica afirmam que as obras incentivam a pornografia e a pedofilia e pedem a suspensão da mostra. Segundo o Palácio das Artes, a exposição é destinada a maiores de 18 anos.

Os religiosos fizeram vigílias e orações diante do museu mineiro. O arcebispo metropolitano dom Walmor Oliveira de Azevedo também lançou críticas. “O meu posicionamento e também o da Igreja é que essa é uma insanidade na arte. A arte é beleza em toda a história da humanidade, é força educativa. Uma arte que parece ser expressão da liberdade, mas que coloca questões que agridem, agridem inclusive símbolos religiosos, e levam pessoas, inclusive as crianças, a estarem em contato indevido com questões que são fundamentais na vida de todos nós, esta não é uma arte educativa”, sustentou o arcebispo.

Em entrevista ao site Bhaz, Antonio Luiz Bernardes, pai do artista, defende o filho e critica a manipulação feita pelas pessoas.  “Na verdade, essa polêmica é falsa. Se pegarmos a exposição do Pedro, que já foi mostrada na Europa e em outros países da América do Sul e do Norte, isso nunca ocorreu. O que acontece de fato é que, eles apontam uma falsa agressão moral por parte dessa e de outras exposições. Não há estímulo à pedofilia ou coisas do tipo. Esses protestos revelam uma ignorância enorme sobre o que é o papel da arte no conhecimento humano e a importância disso para a sociedade”.

Após todas essas polêmicas, artistas e personalidades usaram suas redes sociais para compartilhar vídeos que integram uma campanha contra a censura e a difamação na arte. Para isso, eles usaram a hashtag "342artes". O movimento defende que há em curso um processo de criminalização de artistas no país. 

Em vídeo da campanha, a atriz Fernanda Montenegro defende a liberdade: "Tudo é cultura, inclusive a cultura de repressão. Mas só há um tipo de cultura que realmente constrói um país: é a cultura da liberdade. A cultura liberta cria a alma de uma nação. Nessa nossa luta de sobrevivência cultural, peço aos poucos e honestos políticos que ainda existem, que se posicionem. Saiam, por favor desse silêncio acovardado. Do contrário, nem a pele desses políticos vai se salvar".

A liberdade de expressão versus a censura

Quem defende a permanência das exposições evoca o princípio da liberdade de expressão, direito garantido pela Constituição. O raciocínio é simples: se a pessoa não quiser assistir a uma obra, que está sendo exibida em espaço privado, ela simplesmente pode optar por não ir. 

Ao menos que seja flagrada alguma configuração de crime prevista pela lei, a tentativa de silenciamento de atividades artísticas é considerada uma ação de censura. Por exemplo: se a obra traz uma conotação sexual envolvendo criança ou adolescente, a Promotoria da Infância pode tipificar o conteúdo como apologia à pedofilia. Caso contrário, o fechamento da exposição é uma medida arbitrária.

A liberdade de expressão nas artes não pode ser restringida só porque alguém acha que uma obra é de mau gosto, de baixa qualidade ou seu conteúdo é ofensivo. Mas a ética deve ser levada em conta. Nesse sentido, pode não ser adequado mostrar cenas de violência para menores de idade, o que poderia ser resolvido com a classificação indicativa, mas não com o cancelamento de uma exposição.

Em 2016, a Freemuse, organização internacional que combate a censura na arte, registrou 1028 casos de artistas que tiveram a violação de seus direitos em 78 países. Esse foi um aumento de quase 200% em relação a 2015.

O país no topo da violação de direitos de artistas é o Irã, que registrou 19 prisões de artistas, a maioria acusada de ofender o islamismo. Ameaças de morte, atentados, processos na Justiça e até assassinato contra artistas também aconteceram na Turquia, Egito, Nigéria, China e Rússia.

A censura cultural é muito presente em países com governos totalitários e sem tradição de democracia. Nesse contexto, ela ocorre especialmente em função de temas políticos e de direitos humanos retratos na arte. Em países mais democráticos, a questão da moral ganha maior peso em temas sensíveis como religião, sexualidade e raça. Existe ainda a autocensura, quando artistas passam a evitar um determinado assunto devido a possiblidades de agressões, críticas, processos ou repercussão negativa.

A história recente é marcada por diversos episódios de censura às artes. Um dos mais marcantes aconteceu durante a Alemanha nazista, quando o governo de Hitler perseguia artistas, curadores e produtores que se identificavam com formas de arte não aprovadas pelo regime nacionalista. 

Em 1937, Hitler ordenou uma grande ação contra a arte modernista, anunciando a exposição "Arte Degenerada” na cidade de Munique. Cerca de 650 trabalhos compuseram a exposição, como pinturas, gravuras, livros e desenhos considerados ofensivos e “impuros”. Entre os artistas estavam Picasso, Lasar Segall, Henri Matisse, e Max Ernst.

No Brasil, o governo da Ditadura Militar censurava livros, músicas, peças e filmes. O período mais repressivo foi durante a vigência do AI-5 (1968-1978) quando cerca de 500 filmes, 450 peças, 200 livros e mais de 500 letras foram proibidos. Diversos critérios eram usados pelos censores para justificar o veto, como atentado à moral e aos bons costumes, conteúdo subversivo à segurança nacional e cenas de sexo. A censura oficial só termina em 1988, com a nova Constituição.

É arte ou não é?

As obras artísticas da exposição Queermuseu, a performance de Wagner Schwartz e as obras de Pedro Moraleida foram acusadas de apologia à pedofilia e de não serem verdadeiras obras de arte, apenas provocações.

A arte faz parte da cultura, sendo uma área do conhecimento humano que pode usar os mais variados suportes, linguagens e materiais para se expressar e comunicar. Nesse sentido, muitos ficam confusos em definir o que é arte e o que não é.  Essa questão já foi objeto de estudo das áreas de Filosofia, História e Crítica da Arte. 

Para o filósofo italiano Luigi Pareyson (1918-1991), a arte é uma linguagem que usa diversas formas de expressão, que se reinventa constantemente para construir, conhecer e expressar as mais diversas questões dos seres humanos.

Para que algo seja considerado arte, é necessário um sentido ou uma intenção. A arte produz um saber sobre a condição humana e expressa a visão de mundo do artista: suas ideias, emoções, experiências, incômodos, poética e estética. É um reflexo e expressão do seu tempo.

O artista cria com base em suas ideias e objetivos, mas o sentido dela pode ser mais de um. Quem olha para a obra também cria por meio de suas interpretações. Por isso, não é possível estabelecer uma verdade absoluta sobre o sentido de uma obra de arte porque sempre há a interpretação externa de quem a olha.

A arte nos provoca sentimentos, pensamentos, sensações, emociona e choca. A grande dificuldade de muitas pessoas é entender que a arte nem sempre pode ser interpretada de modo literal. Isso porque as obras também lidam com o universo simbólico.

Para entender o simbólico, é preciso compreender o contexto: histórico, social, cultural e artístico. Assim, é possível entender uma obra sob novos ângulos. A arte muitas vezes faz e provoca perguntas em vez de apresentar respostas prontas. 

A arte precisa ser funcional e bonita?

Comumente a arte é associada ao “belo”, remetendo a uma longa tradição do Ocidente. Na Grécia Antiga, a arte era voltada para o ideal de perfeição e valorização do homem.  Os artistas procuravam representar as formas humanas com simetria, harmonia e equilíbrio da proporção. A arte renascentista retoma o projeto de representação do mundo com bases nesses ideais de beleza. No século 20, A arte moderna assume uma atitude de oposição em relação às convenções artísticas e às regras do belo clássico.

A origem da Modernidade brasileira remonta a 1917, quando Anita Malfatti montou uma exposição com suas obras em São Paulo. Ao ver os quadros, o escritor Monteiro Lobato criticou ferozmente a artista recém-chegada da Europa. Ele escreveu um artigo no qual dizia que as formas abstratas representadas nas obras modernistas seriam fruto de “cérebros transtornados por psicoses” e defendeu a arte clássica e suas formas equilibradas. Cinco anos depois, aconteceria a Semana de Arte Moderna de 22, evento que causou forte repercussão por promover uma arte radical para a época e que acabou sendo alvo de vaias e críticas do público. 

Também é comum a crença de que a arte precisa ter uma utilidade, ser uma representação do real, como um retrato, um belo objeto de decoração ou ter uma finalidade educativa. Em 1913, o francês Marcel Duchamp propôs obras chamadas "ready-made", feitas a partir de objetos do cotidiano. O que ele fazia era apresentar esses objetos de forma descontextualizada e sem a possibilidade de serem utilizados. Dessa forma, criava um novo sentido estético e propunha a dessacralização da arte. Na famosa obra “Fonte”, ele colocou um mictório no meio de uma sala, sem encanamento. Com essa provocação, Duchamp questionou: quem decide o que é obra de arte?

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