Justiça com as próprias mãos - Linchamentos desafiam ordem e Estado
Um jovem acusado de assalto é amarrado a um poste no Rio de Janeiro. O mesmo acontece com um ladrão de 26 anos em Itajaí (SC). Em Goiânia (GO), um adolescente é espancado pela população após um furto, enquanto em Teresina (PI), um suspeito de assalto é amarrado e tem seu rosto posto em um formigueiro.
Esses são apenas alguns dos casos de linchamento ou do que se chama "fazer justiça com as próprias mãos" que ocorreram no país neste início de ano. Para especialistas e sociólogos, tais ações refletem o descontentamento e a descrença da população na Justiça e no Estado e funcionam como reação à onda de violência. Ocorrem não como medida preventiva, mas punitiva para com o suspeito de cometer algum delito.
No entanto, pelo menos no Rio, a ação não foi bem vista pela população. Pesquisa do Datafolha apontou que 79% da população reprovou a ação de justiceiros que espancaram e amarraram a um poste um suspeito de roubo de carros.
Origem dos linchamentos
A origem da expressão “linchamento” é controversa. Alguns dizem que a palavra foi criada inspirada nas práticas de Charles Lynch, que durante a guerra de independência dos Estados Unidos matava dessa forma os pró-britânicos. A hipótese mais aceita, no entanto, é que a palavra tenha sua origem ligada ao capitão norte-americano William Lynch (1742-1820), que durante a Revolução de 1780, também nos Estados Unidos, era conhecido por linchar os negros até a morte.
No passado, os “justiceiros” teriam a premissa para devolver o troco na mesma moeda por causa do Código de Hamurabi, criado em 1780 a.C., um dos primeiros códigos de leis escrito na História, também conhecido como Lei de talião, que pregava o princípio de proporcionalidade da punição, no "olho por olho, dente por dente".
Fenômeno frequente
Os últimos levantamentos sobre o tema mostram que linchamentos acontecem em grande número no país. Segundo o Núcleo de Estudos da Violência da USP, entre os anos de 1980 e 2006 o Brasil registrou 1.179 casos de linchamentos, sendo os Estados de São Paulo (568), Rio de Janeiro (204) e Bahia (180) os que apresentaram os maiores números. Ampliando a pesquisa até 2010, o Estado de São Paulo somou 662 casos de linchamentos, tendo 839 vítimas, enquanto no Rio de Janeiro foram 215 casos e 273 vítimas.
Mas essa prática “fora da lei” não é apenas uma característica do Brasil. Entre o final de março e início de abril deste ano a Argentina também registrou uma onda de linchamentos. Em dez dias foram pelos menos dez casos, sendo que um resultou na morte de David Moreira, de 18 anos, que teria supostamente tentado roubar a carteira de uma mulher que carregava o filho no colo e morreu após apanhar de uma multidão em Rosário, terceira maior cidade de Argentina, na província de Santa Fé.
Em 2013, o Egito, em plena crise política pela queda de mais um governo, viu uma série de linchamentos públicos, fruto de um momento que combinava o enfraquecimento do Estado e a desmoralização da polícia.
Volta ao Estado Natural
O comportamento livre e “justificado” dos linchadores reflete um pouco os conceitos de Estado Natural de Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632 - 1704).
Para Hobbes os homens são maus por natureza. Tal pensamento explica uma de suas mais conhecidas frases: "o homem é o lobo do próprio homem". Ao falar do Estado Natural, ele refere-se a um Estado em que o homem pode tudo, há ausência de regras e de uma instituição estabelecendo a ordem e a liberdade pode ser usada de qualquer forma, não necessariamente para fins pacíficos. É uma etapa pré-civilizatória, anterior à sociedade civil organizada, que, para Hobbes, surge não pela “boa vontade de uns para com os outros, mas o medo recíproco”. O Estado aparece, então, com autoridade absoluta para estabelecer a ordem.
Já o Estado Natural de Locke significava a ampla liberdade dos homens, mas ela não deveria ser usada para prejudicar o outro, ou seja, deve existir dentro da lei. Ao contrário de Hobbes, que acredita que a confiança no Estado deva ser absoluta, Locke diz que se houver quebra de confiança no Estado ou se este não cumprir com as suas obrigações, o povo pode se rebelar. Nessa linha, os linchamentos seriam formas de se rebelar contra um Estado em que não se confia mais.
Desordem?
José de Souza Martins, sociólogo que estuda há mais de 20 anos linchamentos no país, disse recentemente que hoje existe em média um linchamento por dia no Brasil. Em suas pesquisas, o caso mais antigo registrado no Brasil data de 1585, em Salvador (BA). A vítima foi Antônio Tamandaré, índio que liderava um movimento messiânico, tendo brancos entre seus adeptos. Foram os próprios índios que o seguiam que o prenderam, queimaram e estrangularam, além de destruir seu templo.
O sociólogo aponta que "os linchamentos que aqui ocorrem, pela forma que assumem e pelo caráter ritual que parecem ter, são claramente punitivos" e oferece outra reflexão: a de que o linchamento não seria necessariamente uma manifestação de desordem, mas pode ser interpretado como um questionamento da desordem.
DIRETO AO PONTO
O início de 2014 foi marcado por uma série de casos envolvendo linchamentos e da população fazendo “justiça com as próprias mãos” no Brasil. Os casos foram desencadeados após um grupo de "justiceiros" amarrar um adolescente nu, acusado de assalto, a um poste no Rio de Janeiro. Ações semelhantes se espalharam pelo país, boa parte registrada em vídeos postados na internet.
Para especialistas e sociólogos, tais ações refletem o descontentamento e a descrença da população na justiça e funcionam como reação à onda de violência. A sensação de impunidade e insegurança chegou também à Argentina, que também neste ano, registrou dez casos de linchamentos em dez dias, sendo que um resultou na morte do suposto ladrão. O sociólogo José de Souza Martins, que há 20 anos estuda o assunto, aponta que "os linchamentos que aqui ocorrem, pela forma que assumem e pelo caráter ritual que parecem ter, são claramente punitivos" e oferece outra reflexão: a de que o linchamento não seria uma manifestação de desordem, mas um questionamento da desordem. |
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