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Memória - Veja as recentes descobertas da biologia

Christopher Silas Neal/The New York Times
Imagem: Christopher Silas Neal/The New York Times

Andréia Martins

Da Novelo Comunicação

"A memória não é nem sensação nem julgamento, é um estado ou qualidade de um deles, quando o tempo já passou". A ideia de memória descrita na frase era o conceito que Aristóteles (385 a.C. - 322 a.C.) tinha de memória. O filósofo grego dividia a memória em duas: havia a memória consciente, que conservava o passado (amenem), e a memória de reminiscência (amamnesi), inconsciente. Fundamental para ele era o tempo. Toda a memória implicava a passagem do tempo.

Talvez este seja um dos únicos pontos inquestionáveis da memória desde então. Nos últimos anos, novas tecnologias permitiram descobertas sobre o funcionamento do cérebro, entre elas, como a memória opera.

Memória é a capacidade humana de reter fatos e experiências do passado, é o mecanismo com o qual o nosso cérebro adquire e armazena informações. É com ela que nos lembramos de pessoas, experiências, nos adaptamos a hábitos rotineiros e não conseguimos esquecer situações desagradáveis, devido ao seu impacto emocional.

Quando falamos sobre formas de memória, podemos dividi-la em duas: a memória de procedimento ou declarativa. A primeira guarda informações através da repetição de hábitos ou atividades (motoras, sensitivas e intelectuais) que seguem sempre o mesmo padrão. Nesse caso, a memória adquirida não depende da consciência.

Já a memória declarativa, esta armazena informação de fatos e de dados levados ao nosso conhecimento através dos sentidos e de processos internos do cérebro. Ela inclui ainda a memória de fatos vivenciados pela pessoa e de informações adquiridas pela transmissão de conhecimento, como em livros, filmes, música e outros. Em casos de depressão e amnésia, esta é a memória mais prejudicada.

Foi no final do século 19 que Santiago Ramón descobriu que para se constituírem, as memórias obedecem a modificações das sinapses, a ligação de um neurônio com o outro e que possibilita a passagem do impulso de uma célula à outra.

A relação entre sinapse e memória foi comprovada décadas depois. As sinapses liberam os neurotransmissores, que desempenham em geral funções moduladoras relacionadas com as emoções, o alerta e o estado de ânimo. Tanto a lembrança quando a formação da memória declarativa é sensível a esses fatores. Durante a transmissão do impulso nervoso, haveria uma alteração na função sináptica, criando novos circuitos neuronais. Segundo essa hipótese, esses circuitos seriam os responsáveis pela decodificação das informações.

Sob o aspecto da função e duração, a memória pode ser classificada em memória de trabalho (que mantém a informação viva durante segundos enquanto ela está sendo processada pelo cérebro), de curto prazo (de 5 a 6 horas) e de longo prazo, que pode durar horas, dias ou anos.

Os processos bioquímicos para a formação da memória de longa duração ocorrem sempre no hipocampo e foram descritas em um estudo recente feito pela equipe do professor Iván Antonio Izquierdo, professor de Neurologia na PUC-RS e especialista no assunto.

Esses processos envolvem a ativação de numerosas enzimas que regulam a atividade de proteínas preexistentes no cérebro, e a produção por elas de ativação gênica e síntese proteica. Uma dessas proteínas é o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF), que atua na formação de memórias. Ao ser liberado no hipocampo, essa proteína determina por quanto tempo aquela memória permanecerá no cérebro.

Vale destacar que esses processos não são sempre perfeitos. Podem sofrer alterações e falhas durante as etapas. Entre os fatores que interferem estão o conteúdo emocional vinculado à experiência que deixou a memória. Quanto maior a emoção, maior será a ativação na memória.

Sobre a memória de curta duração, descobriu-se que ela é processada em paralelo à de longa duração e ocorre também no hipocampo e córtex entorrinal, zona associada à memória e que ganhou recentemente o apelido de GPS do cérebro. Clinicamente, essa descoberta explica porque em casos de demência ou delírio na velhice há perda, principalmente, da memória de curta duração.

Aliás, a descoberta do GPS do cérebro deu o prêmio Nobel de Medicina de 2014 ao trio de pesquisadores John O’Keefe, Edvard e May-Britt Moser. Eles identificaram um tipo de neurônio chamado de “células de grade”, situado próximo do hipocampo, no córtex entorrinal. Essas células eram ativadas quando os animais repetiam uma trajetória, gerando um sistema de coordenadas que permitiam a localização precisa dos animais, ou seja, formando uma memória de lugares.

Outras descobertas recentes apontaram que as recordações, ao contrário do que se imaginava, podem ser mudadas. Neste caso, trata-se da alteração de memórias consideradas negativas. Elas podem ganhar uma nova roupagem do cérebro se passarem por uma etapa chamada "recall" ou "recuperação". Nessa etapa, memórias anteriores vêm à tona. Um novo desfecho para uma mesma situação, e armazenado pelo cérebro, pode gerar uma nova lembrança, eliminado a anterior.

Estudos feitos na New York University, nos Estados Unidos, comprovaram que a manipulação da memória é eficaz quando aplicada logo após a lembrança ser resgatada. Os cientistas chamam o tempo para que a mudança ocorra de janela de oportunidade, e todo o processo é coordenado pelo córtex pré-frontal.

Essa intervenção sobre o conteúdo da memória levanta discussões na comunidade científica. No caso de lembranças ruins, eliminar traumas e o sofrimento das pessoas é sem dúvida um ponto positivo. No entanto, ainda não se tem completa noção do impacto dessa alteração em outras memórias. Ao mesmo tempo em que você pode apagar uma memória ruim de uma situação vivida em uma viagem, por exemplo, essa substituição pode apagar também uma boa lembrança.

Outras descobertas recentes são a comprovação de que é possível memorizar quando se está dormindo e que, durante uma palestra ou evento com alta carga de transmissão de informação, fazer uma pausa ajuda o cérebro a absorver melhor o que foi passado.

O sono, aliás, tem papel primordial para a boa memória. Voltando às sinapses, para que elas transmitam as informações recebidas de forma eficiente é preciso que os neurônios estejam saudáveis. E isso é obtido com uma boa alimentação e boas noites de sono, quando o cérebro repassa o que foi absorvido e elimina as toxinas de um dia mentalmente exaustivo.

Essas descobertas mostram que o funcionamento da memória não é um processo fechado e definido. Está sujeito a estímulos externos, internos (do organismo) e de ordem emocional, e mesmo uma memória já arquivada pelo cérebro pode ser alterada.

Hoje, apoiadas em aplicativos e mecanismos de buscas online, dormindo cada vez menos e com uma capacidade de concentração menor, as novas gerações não recorrem mais tanto ao que está guardado na mente ou não conseguem processar os dados e arquivá-los devido ao excesso de informação a que somos expostos diariamente.

Em 2012, três pesquisadores realizaram um estudo na Universidade de Columbia com estudantes. Uma parte do grupo receberia informações e poderiam salvá-las no computador, e a outra receberia as informações e, em seguida, elas seriam apagadas. O grupo que não podia contar com os arquivos salvos no computador se lembrava mais facilmente das informações passadas, ao contrário do outro.

Essa espécie de bengala que a internet nos oferece na hora de pesquisar ou lembrar uma informação recebeu o nome de "Efeito Google". O cérebro é constantemente modificado por todas as experiências que se passam com o indivíduo, inclusive seu pensamento. Na era da informação instantânea essa perda de concentração, cansaço da mente e “brancos”, mesmo em pessoas mais jovens, parecem normais.

A questão talvez não seja tanta nossa perda de concentração, e sim o fato de que nossa atenção esteja cada vez menos seletiva. A perda desse poder de seleção nas sociedades atuais vem sendo chamada por profissionais da informação de "sociedades do esquecimento".

Trata-se de uma oposição à ideia de sociedades da memória, que existiam no passado e hoje ainda podem ser encontradas em regiões isoladas da África, América do Sul e até Europa. Nesses grupos, a memória tinha papel crucial na transmissão da cultura e da história de gerações antigas para as mais novas.

Atualmente nosso cérebro vive sobrecarregado. Queremos fazer várias coisas ao mesmo tempo, sem nos concentrarmos em uma tarefa principal. Cuidar da mente deve ser uma de nossas tarefas principais. Afinal, se tem uma coisa que os mecanismos de busca online não podem dizer por nós são quais memórias importam mais do que outras e quais podemos apagar da nossa lembrança.

 

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