Delação premiada - Deve-se premiar a traição?
Entregar um colega na escola por uma molecagem, revelar o culpado por um erro ou o autor de uma brincadeira ou atitude que possa ter prejudicado alguém. Esse comportamento é conhecido por vários nomes: dedo-duro, fofoqueiro, linguarudo, delator, Judas e X9.
Este último era também o nome dado aos presos do antigo presídio do Carandiru, em São Paulo, que ficavam no Pavilhão X9. Eles eram informantes da polícia e precisavam ficar em alas separadas dos outros presos ou poderiam ser mortos.
Ser quem entrega o outro nunca foi uma atitude bem vista no convívio social. Afinal, a ideia que se criou é a de que não se pode confiar em um dedo-duro. E quando isso envolve o crime organizado, por exemplo, não foram poucos os X9 que acabaram mortos por trair a confiança de traficantes.
As investigações da operação Lava Jato, que apura esquemas de desvios de dinheiro e corrupção na Petrobras, colocaram a figura do delator no centro das atenções ao fazer uso da delação premiada, gerando um debate: se havia ética em aceitar a ajuda de um criminoso e se a prática deveria ser mesmo incentivada.
Isso porque, no caso das investigações sobre a estatal, os delatores em questão não são pessoas que testemunharam ou viram alguma coisa suspeita, mas aqueles que também praticaram crimes.
O nome delação premiada vem do fato de o acordo ser considerado um “prêmio” para o réu que pode reduzir até dois terços da sua pena ou perdoar o crime se as informações reveladas forem comprovadas e tiverem relevância e valor para o Estado. E ela sempre deve ser feita de forma voluntária pelo delator e só pode ser usada em casos envolvendo organizações criminosas.
Um dos primeiros países a usar o recurso da delação premiada foi a Inglaterra, em 1775. O recurso como conhecemos hoje foi instituído nos Estados Unidos nos anos 1960. Com o nome de "plea bargaining", a justiça norte-americana ofereceu um acordo a mafiosos italianos que estavam sendo investigados propondo reduzir a pena, caso eles colaborassem com as investigações. Hoje a prática é comum nos tribunais do país.
No Brasil, a delação premiada ainda é uma novidade. Por aqui, a Justiça Penal sempre usou como recursos de investigação a prova pericial, documental, testemunhal e interrogatório do réu.
Foi a Lei 8.072/90 de crimes hediondos que adotou o instituto da delação premiada, depois ampliado para casos de extorsão mediante sequestro, crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e ordem tributária e crimes praticados por organizações criminosas e outros. Mas até então a legislação ainda não regulamentava essa técnica de investigação.
Esse tipo de acordo, com os deveres da Justiça e as garantias ao delator, só foi regulamentado como parte do sistema jurídico brasileiro em 2013, com a lei anticorrupção (Lei 12.846) e a lei das organizações criminosas (Lei 12.850), sancionadas pela presidente Dilma Rousseff.
No caso da segunda, ela prevê a colaboração premiada em qualquer fase da persecução penal como meio de obtenção de provas contra as organizações criminais. A redução de pena inclui a identificação de coautores, estrutura hierárquica, divisão de tarefas, localização de eventual vítima entre outros.
A questão moral: Qual a ética em premiar a traição?
Ao comentar sobre os delatores da operação Lava Jato, a presidente Dilma Rousseff declarou que não respeitava delatores. "Até porque eu estive presa na ditadura e sei o que é. Tentaram me transformar numa delatora. A ditadura fazia isso com as pessoas. Eu garanto para vocês que eu resisti bravamente", disse a presidente.
Hoje, a delação premiada que vemos no noticiário político nem de longe se parece com à a tortura imposta pela repressão na tentativa de obrigar manifestantes e guerrilheiros a entregarem seus comparsas durante a ditadura militar.
Uma das questões levantadas em torno da delação premiada é seu aspecto moral: deve-se premiar uma traição? Se sim, quando isso é visto de forma positiva e quando é considerada um ato contra a pátria?
Na história do Brasil, a figura do delator traidor é muito associada a Joaquim Silvério dos Reis, que em 1789 denunciou os planos dos inconfidentes mineiros e Tiradentes em troca do perdão de sua dívida junto à Fazenda Real. Nesse caso, ele é visto como um traidor da pátria por ter dedurado um movimento iniciado pelos mineiros contra o domínio da corte portuguesa.
No caso dos delatores da Lava Jato, ao cometerem o crime eles já estavam, de certa forma, indo contra os princípios éticos e das leis brasileiras. Na delação, a traição seria estendida aos próprios comparsas.
Mas há argumentos para diferentes pontos de vista. Para uns, premiar a traição é torná-la um meio de se obter para si um benefício e aliviar para o lado do delator, com uma pena mais branda. Este é outro ponto contra a delação, a de que o delator recebe uma pena bem menor do que os outros acusados, tendo eles o mesmo grau de culpabilidade no crime. Há ainda a possibilidade de uma delação falsa, motivada por vingança ou desafeto.
Para quem defende a delação, o principal argumento é que as informações dadas por quem participa de organizações criminosas, ou seja, conhece o negócio de dentro, são valiosas e podem acelerar a investigação. Quem defende a prática enxerga a “traição”, neste caso, como um ato contra o crime que leva a uma punição mais global. Outra questão levantada por juristas é a identificação do limite da pena a ser “premiada”.
Diante de esquemas criminosos cada vez mais complexos, o maior desafio da justiça é buscar novas soluções legais e ágeis contra a criminalidade. Com sua regulamentação recente, a delação premiada é considerada um instrumento eficaz no combate ao crime.
O debate ético é válido. Há situações em que o delator será como Silvério traindo um movimento em benefício próprio; em outros, serão criminosos entregando comparsas, traindo a própria organização, mas beneficiando o Estado. Será que ambos serão considerados delatores em iguais peso e medida? Talvez sim, talvez não. A única coisa que eles terão em comum será mesmo o fato de serem considerados traidores.
BIBLIOGRAFIA
Corrupção: incluindo a nova Lei Anticorrupção, de Roberto Livianu (Quartier Latin)
O que o dinheiro não compra, de J. Michael Sandel (Civilização Brasileira)
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