O Burrinho Pedrês (Sagarana) - Guimarães Rosa
Sete-de-Ouros, um burrinho já idoso, é escolhido para servir de montaria num transporte de gado. Um dos vaqueiros, Silvino, está com ódio de Badu, que anda namorando a moça de quem Silvino gosta. Corre o boato, entre os vaqueiros, de que Silvino pretende vingar-se do rival. De fato, Silvino atiça um touro e o faz investir contra Badu, que, porém, consegue dominá-lo. Os vaqueiros continuam murmurando que Silvino vai matar Badu. No caminho de volta, este, bêbado, é o último a sair do bar e tem de montar no burro. Anoitece e Silvino revela a seu irmão o plano de morte. Contudo, na travessia do Córrego da Fome, que pela cheia transformara-se em rio perigoso, vaqueiros e cavalos se afogam. Salvam-se apenas Badu e Francolim, um montado e outro pendurado no rabo do burrinho.
Sete-de-Ouros, burro velho e desacreditado, personifica a cautela, a prudência e a muito mineira noção de que não vale a pena lutar contra a correnteza, se o que se pretende é a travessia. Sete-de-Ouros - no jogo de truco, de "manilha velha" é a manilha mais baixa, após a espadilha, o sete-de-copas e o zape.
"Macho" é mulo, mu, muar - o burrinho Sete-de-Ouros, protagonista da história. "Carregado de algodão" simboliza o peso da vida, o trabalho do burrinho, e metaforiza a carga dos homens, o peso do mundo, como fardos de algodão. "Preguntei: p'ra donde ia?" - a forma arcaica do verbo perguntar sugere a indagação permanente dos homens, sábios e filósofos: para quê?, por quê?, de onde?, para onde?. "P'ra rodar o mutirão" alude ao esforço coletivo, ao dever de solidariedade que o burrinho cumprirá na sua hora e na sua vez.
Nos contos, novelas e romance de Guimarães Rosa, há sempre um momento crucial, uma "hora e vez", uma "travessia", ápice da existência, resumo de seu sentido: "...a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida".
Em "Sagarana" renasce o anônimo "contador de estórias", o homem coletivo que se enraíza nos rapsodos gregos e nas canções de gesta medievais. Desde o início do conto (Era um burrinho pedrês...) esboça-se claramente a atitude ingênua e espontânea da "palavra lúdica", que não aprisiona o falar nos limites rígidos do individualismo, mas se identifica com a palavra anônima e coletiva.
Seja pela fórmula linguística caracterizadora da narrativa elementar, da fábula, da lenda (Era um burrinho...), tempo e modo verbais que, de imediato, tiram à narrativa o caráter de coisa datada, para projetarem na esfera intemporal do universo de ficção; seja pela mescla de precisão e imprecisão documental no registro do espaço (vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão); seja pela dimensão antropomórfica (forma humana) que é dada à personagem central, o "burrinho-gente", e que situa a narrativa na fronteira entre o real e o mágico; seja pela funcionalidade das cantigas inseridas no fluxo narrativo, tudo isso e muito mais nos revela, no universo da palavra rosiana, a presença do "homo ludens" (homem lúdico), descompromissado com as estruturas convencionais do pensamento lógico.
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