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Trechos do livro O Jovem Törless - Robert Musil

Do Banco de Dados da Folha

Capítulo 1
Era uma pequena estação de trens, no caminho para a Rússia.

Quatro trilhos de ferro corriam paralelos, interminavelmente, na direção dos dois lados, entre o cascalho amarelo da ampla ferrovia. Ao lado de cada trilho, como uma sombra suja, destacava-se o traço escuro queimado no chão pela fumaça dos trens.

Atrás da estação baixa e pintada a óleo, subia até a rampa da gare uma estrada larga e meio arruinada. Suas margens perdiam-se no solo espezinhado e só eram identificadas por duas acácias postadas de ambos os lados, tristes, com folhas sedentas e sufocadas pela fuligem.

Talvez fosse por causa dessas cores tristes, talvez pela luz pálida do sol da tarde, fraco e abafado pelo nevoeiro: objetos e pessoas pareciam indiferentes, mecânicos e sem vida, como num teatro de marionetes. De tempos em tempos, a intervalos regulares, o chefe da estação saía de seu escritório, olhava com o mesmo movimento de cabeça a casinha do vigia, que ainda não sinalizava a aproximação do trem expresso porque este sofrera grande atraso na fronteira; depois, com um só e repetido gesto do braço, pegava o relógio de bolso, sacudia a cabeça e sumia novamente - assim como vão e vêm as figuras dos velhos relógios das torres, quando estes batem as horas.

Na larga faixa pisoteada entre os trilhos e a estação passeava um alegre grupo de jovens, à direita e à esquerda de um casal de mais idade, que formava o centro da conversa ruidosa.

No entanto, a alegria do grupo não era verdadeira; o riso divertido parecia emudecer a poucos passos deles, caindo ao solo como se batesse contra um obstáculo duro e invisível.

A esposa do Conselheiro da Corte Törless era a dama de uns quarenta anos que escondia atrás de um denso véu os olhos vermelhos de chorar. Estavam-se despedindo, e era difícil permitir que seu único filho voltasse novamente por tanto tempo para junto de estranhos, sem que ela pudesse cuidar pessoalmente dele.

Pois a cidadezinha era longe de onde moravam, na sede da corte; situava-se a leste do império, em terras áridas e pouco habitadas.

A Sra. Törless permitia que o filho ficasse num lugar tão distante e pouco aconchegante porque nele existia um famoso Internato, fundado no século anterior por uma ordem religiosa, e que se localizava lá certamente para proteger a juventude das influências corruptoras de uma grande cidade.

Era ali que se educavam os filhos das melhores famílias do país, para que, deixando a escola, entrassem na universidade, no exército, ou no serviço público; em qualquer um desses casos era excelente recomendação ter passado por aquele internato, em W.

Havia quatro anos que o casal Törless decidira ceder aos pedidos do filho e conseguir que fosse aceito pela instituição.

Essa decisão custara muitas lágrimas mais tarde. Pois, quase desde o momento em que o portão do internato se fechara irreversivelmente atrás dele, o pequeno Törless sofrera uma terrível e apaixonada saudade. Nem as aulas, nem os jogos nos grandes e viçosos gramados do parque, nem as outras distrações que o internato oferecia conseguiam atraí-lo: ele mal participava deles. Via tudo como por trás de um véu; mesmo durante o dia, não poucas vezes custava-lhe conter os soluços; à noite, só adormecia chorando.

Escrevia para casa quase diariamente, e era apenas nessas cartas que vivia; tudo o mais que fizesse parecia-lhe fantasmagórico e sem sentido, fases sempre iguais, como as horas no mostrador de um relógio. Quando, porém, escrevia, sentia algo diferente, exclusivo: uma ilha de sóis e cores emergia dentro dele em meio ao mar cinzento, frio e insensível que dia após dia o rodeava. E quando, no correr do dia, durante os jogos ou as aulas, pensava na carta que escreveria à noite, era como se carregasse consigo a chave dourada e secreta, presa numa corrente invisível, com que, sem que ninguém visse, abriria o portão de jardins maravilhosos.

Era singular esse repentino e devorador afeto pelos pais, novo e estranho também para Törless. Antes não o sentira; viera para o internato voluntariamente e com prazer; até rira quando a mãe chorara na primeira despedida. Só depois de alguns dias de solidão, sentindo-se relativamente bem, essa sensação irrompera nele, súbita e primitiva.

Pensava que fosse saudade de casa e dos pais. Mas, na verdade, era algo mais complexo e indefinido. Pois o "objeto" dessa saudade, a imagem dos pais, já nem estava contido nela. Refiro-me à imagem plástica de uma pessoa amada, não apenas fruto da memória, mas algo físico, que fala a todos os nossos sentidos e permanece guardado neles, de modo que nada fazemos sem sentir o outro do nosso lado, silencioso e invisível. Em breve, essa recordação se desfez, como uma ressonância que só vibra por algum tempo. Por exemplo: naquele tempo Törless já não conseguia evocar visualmente seus "queridos, queridos pais"- em geral era assim que pensava neles. Quando tentava, no lugar deles crescia em seu interior uma dor ilimitada, uma saudade que o feria e atraía, pois suas chamas ardentes doíam e o deliciavam ao mesmo tempo. A lembrança dos pais tornou-se cada vez mais apenas ocasião de provocar esse sofrimento egoísta, numa espécie de altivez sensual, encerrando-o como no isolamento de uma capela, onde, diante de imagens sagradas, vindo de cem velas e cem olhos de santos, espalha-se o incenso entre a dor dos que ali se flagelam...

Quando, depois, sua "saudade de casa" ficou menos intensa e por fim passou, essa característica revelou-se bem clara. O fim da saudade não trouxe a esperada satisfação; ao contrário, deixou na alma do jovem Törless um grande vazio. E nesse nada, nesse vácuo interior, ele reconheceu que não fora apenas a saudade que passara, mas também algo positivo, uma força espiritual, que só florescera sob o pretexto da dor.

Agora, porém, acabara, e ele só entendera essa fonte de uma primeira felicidade mais alta quando ela chegara ao fim.

Nessa época também desapareceram de suas cartas os apaixonados sinais da alma que começara a despertar, substituídos por detalhadas descrições da vida no internato e de seus novos amigos.

Törless sentia-se empobrecido e nu, como um arbusto que experimenta o primeiro inverno após uma floração ainda sem frutos.

Seus pais, contudo, estavam contentes. Amavam-no com ternura intensa, uma ternura irrefletida e animal. Sempre que voltava das férias para o internato, a esposa do conselheiro sentia a casa morta e vazia e, ainda dias depois dessas visitas, andava pelos aposentos com lágrimas nos olhos, acariciando aqui e ali um objeto sobre o qual os olhos do rapaz haviam pousado ou que ele segurara nas mãos. Ambos os pais se teriam deixado até matar por causa dele.

A desamparada emoção do filho, a apaixonada e obstinada dor de suas cartas fizeram-nos ficar dolorosamente preocupados; mas a alegria e o contentamento que ele revelara depois puseram-nos novamente felizes, sentindo que ele superara a crise, e apoiavam-no de todas as formas.

Nem numa situação nem na outra reconheceram, no entanto, o sintoma de certa evolução espiritual; antes, avaliaram dor e paz igualmente, como fruto natural das circunstâncias. Não atinaram em que aquilo fora a primeira e fracassada tentativa do jovem, agora entregue a si mesmo, de desdobrar suas forças interiores.

Capítulo 2
Törless andava inquieto, em vão tateava aqui e ali à procura de alguma coisa nova que lhe pudesse servir de apoio.
3
Nesse tempo ocorreu um episódio sintomático do que se preparava para ele e que mais tarde evoluiria.

Certo dia chegara ao internato o jovem Príncipe H., filho de uma das mais influentes, tradicionais e conservadoras famílias de nobres do império.

Todos os outros rapazes aborreceram-se com seus afetados olhos meigos; ridicularizavam a sua maneira de esticar o quadril ao parar, brincando lentamente com os dedos quando falava; diziam que isso era coisa de mulheres. Zombavam dele especialmente porque não fora trazido ao internato pelos pais, mas pelo preceptor, um religioso, doutor em teologia.

Törless, porém, desde o primeiro instante sentira grande atração por ele. Talvez porque o rapaz fosse um príncipe da corte, talvez também por ser a primeira vez que conhecia alguém tão diferente.

De alguma forma o rapaz parecia ainda trazer consigo o silêncio de exercícios piedosos e de um antigo castelo no campo. Tinha movimentos flexíveis e macios ao andar, um modo um pouco tímido de se encolher, como quem adquiriu o hábito de atravessar, ereto, salões despovoados, onde qualquer outra pessoa se chocaria com duras quinas invisíveis no espaço vazio.

O contato com o príncipe tornou-se para Törless fonte de um refinado prazer psicológico. Fez desabrochar nele aquela compreensão do ser humano que nos possibilita reconhecer outra pessoa pelo tom da voz, pela maneira de segurar um objeto, até pelo timbre do seu silêncio ou a postura com que se coloca num determinado espaço; em suma, por toda essa maneira quase imperceptível mas peculiar de alguém existir - isso que envolve o cerne, o que é palpável e abordável, como a carne acomodada em torno do esqueleto, coisas que podem ser apreciadas de forma tão nítida que permitem intuir a personalidade do outro.

Durante esse breve lapso de tempo Törless viveu num idílio. Não se aborrecia com a religiosidade do novo amigo, na verdade totalmente estranha a si, como filho que era de burgueses livres-pensadores. Ao contrário, aceitou-a sem objeções. A seus olhos a religião era até um privilégio do príncipe, pois sublimava a criatura que ele sentia tão diversa de si próprio e com a qual não se podia comparar.

Em companhia do príncipe, sentia-se como numa capela à beira de um caminho, e a sensação de se achar fora do devido lugar desaparecia ante o prazer de observar a luz do dia através dos vitrais e deixar a vista passear pelos supérfluos enfeites dourados, superpostos na alma daquela pessoa, até obter do conjunto um quadro confuso, como alguém que seguisse distraído com o dedo um belo arabesco cujos traçados obedecessem a leis estranhas.

Depois, subitamente, os dois romperam.

Por uma tolice, conforme Törless reconheceu mais tarde.

Haviam, enfim, discutido sobre questões religiosas. E nesse momento tudo aconteceu: como se fosse algo independente de Törless seu raciocínio jorrara incontrolavelmente sobre o delicado príncipe. Cobriu-o de zombarias racionalistas, destruiu como um bárbaro a construção de filigrana na qual a alma do outro habitava. Separaram-se cheios de ira.

Desde então nunca mais trocaram uma palavra. Obscuramente Törless sabia que cometera algo insensato, e obscuramente reconhecia, mais por intuição, que o bastão do racionalismo destruíra na hora errada algo delicado e fascinante. Ele, porém, não conseguira controlar-se.

Uma espécie de saudade das coisas antigas restaria dentro de si provavelmente para sempre; por enquanto, parecia ter embarcado em outra correnteza, que cada vez mais o afastaria de tudo aquilo.

Passado algum tempo, o príncipe retirou-se do internato onde nunca se sentira bem.
4
Agora tudo se tornara vazio e monótono para Törless. Nesse ínterim, iniciara-se e crescera, obscuro e paulatino, o seu amadurecimento sexual. Nessa fase travou algumas amizades novas, que mais tarde teriam a maior importância, como, por exemplo, Beineberg e Reiting, Moté e Hofmeier, exatamente os rapazes com quem hoje Törless acompanhava os pais até a estação.

Singularmente eram os piores da classe, talentosos e de boas famílias, embora selvagens e violentos, às vezes até grosseiros. Talvez Törless apreciasse a companhia deles devido à sua insegurança, muito grande desde que se afastara do príncipe. Tratava-se mesmo de uma continuação direta desse afastamento, pois, como este, significava medo de emoções demasiadamente sutis, medo que o distinguia dos outros colegas, saudáveis, fortes e nada complicados.

Törless entregou-se inteiramente à influência deles, pois sua condição espiritual era mais ou menos a seguinte: em sua idade lia-se no ginásio Goethe, Schiller, Shakespeare, talvez até os modernos. Coisas que, semidigeridas, mais tarde são exteriorizadas por escrito, e surgem tragédias romanas ou poemas sentimentais, páginas inteiras de pontuação semelhante a uma renda delicada: coisas em si tolas, conquanto inestimáveis para que se tenha um desenvolvimento seguro. Pois essas associações, vindas de fora, essas emoções tomadas de empréstimo, ajudam os jovens a caminhar sobre o solo espiritual excessivamente macio desses anos, nos quais eles têm necessidade de descobrir o sentido de si próprios, ainda que imaturos demais para fazerem qualquer sentido. Não importa que alguns guardem vestígios disso e outros não; mais tarde, todos aprenderão a conviver consigo próprios. O perigo reside apenas na idade de transição. Se nessa fase pudéssemos fazer o adolescente ver o quanto é ridículo, o chão se abriria sob seus pés e ele despencaria como um sonâmbulo que, subitamente despertado, não vê senão um vácuo à sua frente.

Essa ilusão, esse pequeno truque em favor da evolução espiritual dos jovens, era o que faltava no internato.

Havia nas prateleiras coleções de clássicos bem-considerados, embora maçantes. Havia também novelas sentimentais e alguns livros de aventuras militares, de humor duvidoso.

O pequeno Törless, faminto por leituras, devorava tudo isso, e o conteúdo romântico de uma ou outra daquelas novelas de vez em quando permanecia algum tempo em sua mente; mas nada exerceu verdadeira influência em sua personalidade.

Nessa época parecia que ele não tinha personalidade.

Por exemplo, influenciado por essas leituras, escreveu contos ou começou uma epopéia romântica. Excitado com os sofrimentos amorosos de seus heróis, seu rosto ficava vermelho, seu pulso se acelerava, os olhos brilhavam.

Mal, porém, largava a caneta, tudo acabava; era como se seu espírito só vivesse durante a emoção. Era capaz de rabiscar um poema ou conto sempre que lhe pedissem. Excitava-se, mas nunca levava isso muito a sério, e essa atividade não lhe parecia importante. Não mudava em nada sua pessoa, era como se o que escrevia nem brotasse dele. Apenas, sob alguma pressão externa, tinha emoções que se erguiam acima da indiferença habitual, como um ator necessita do estímulo de determinado papel para representar bem.

Eram apenas reações intelectuais. Mas aquilo que chamamos caráter, ou alma, o contorno ou o timbre de um ser humano, aquilo, enfim, que faz com que pensamentos, atos ou decisões pareçam menos importantes, casuais, inessenciais, aquilo que, por exemplo, ligara Törless ao príncipe para além de qualquer juízo racional, aquele pano de fundo último e imóvel - isso perdera-se totalmente nessa época.

Em seus colegas, esse pano de fundo era a alegria do esporte, um primitivo prazer de viver, que os levava a nem sentir necessidade de coisa alguma a mais, assim como, nos tempos de colégio, brincar com a literatura nos livra de outros desejos.

Törless, contudo, possuía excessiva inclinação pelas coisas do espírito para ser como os colegas, e percebia agudamente que eles eram ridículos com as falsas emoções provocadas pela vida no colégio, que constantemente nos obriga a nos meter em brigas e discussões. Assim, sua personalidade adquiriu um quê de indefinido, um desamparo íntimo, que não lhe permitia encontrar o caminho de si mesmo.

Ligava-se aos novos amigos porque a selvageria deles o impressionava. Ambicioso, vez por outra tentava, inclusive, superá-los, embora ficasse sempre na metade. Por isso, zombavam dele.

Na verdade, nessa fase crítica, toda a sua vida constava do renovado esforço de imitar os colegas rudes e mais viris, e de uma profunda indiferença interior em relação a esse esforço.

Os pais o visitavam e, quando se achava a sós com eles, Törless mantinha-se calado e tímido. Esquivava-se às ternas carícias da mãe, sempre com uma desculpa. No fundo, teria gostado de entregar-se a elas, mas sentia vergonha, como se os olhos dos camaradas estivessem fitos nele.

Os pais encararam isso como falta de jeito própria da adolescência.

À tarde reunia-se todo o ruidoso bando. Jogavam cartas, comiam, bebiam, contavam anedotas sobre os professores, e fumavam os cigarros que o conselheiro trouxera de casa.

Essa alegria deixava os pais calmos e contentes.

Não sabiam que ao mesmo tempo Törless passava por horas bastante diversas, ultimamente cada vez mais freqüentes. Havia momentos em que a vida no internato se lhe tornava totalmente indiferente. A massa de suas preocupações diárias desfazia-se; as horas de sua vida se desagregavam sem laço interior que as ligasse.

Não raro sentava-se imerso em sombrias reflexões, como que debruçado sobre si mesmo.

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