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Trechos do livro Angústia Graciliano Ramos Do Banco de Dados Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios. Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, aproximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa. Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas, exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição. Um sujeito chega, atenta, encolhendo os ombros ou estirando o beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por detrás do vidro. Outro larga uma opinião à-toa. Basbaques escutam, saem. E os autores, resignados, mostram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres da Rua da Lama. Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que magreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram. Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório, para datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante a cara balofa de Julião Tavares aparece em cima do original, e os meus dedos encontram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão, capricho em não usar a borracha. Concluo o trabalho, mas a resma de papel fica muito reduzida. À noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal. Vitória resmunga na cozinha, ratos famintos remexem latas e embrulhos no guarda-comidas, automóveis roncam na rua. Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes. Quando não consigo formar combinações novas, traço rabiscos que representam uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher e outros disparates. Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados que me desprezam porque sou um pobre-diabo. Tipos bestas. Ficam dias inteiros fuxicando nos cafés e preguiçando, indecentes. Quando avisto essa cambada, encolho-me, colo-me às paredes como um rato assustado. Como um rato, exatamente. Fujo dos negociantes que soltam gargalhadas enormes, discutem política e putaria. Não posso pagar o aluguel da casa. Dr. Gouveia aperta-me com bilhetes de cobrança. Bilhetes inúteis, mas dr. Gouveia não compreende isto. Há também o homem da luz, o Moisés das prestações, uma promissória de quinhentos mil-réis, já reformulada. E coisas piores, muito piores. O artigo que me pediram afasta-se do papel. É verdade que tenho o cigarro e tenho o álcool, mas quando bebo demais ou fumo demais, a minha tristeza cresce. Tristeza e raiva. Ar, mar, ria, arma, ira. Passatempo estúpido. Dr. Gouveia é um monstro. Compôs, no quinto ano, duas colunas que publicou por dinheiro na secção livre de um jornal ordinário. Meteu esse trabalhinho num caixilho dourado e pregou-o na parede, por cima do bureau. Está cheio de erros e pastéis. Mas dr. Gouveia não os sente. O espírito dele não tem ambições. Dr. Gouveia só se ocupa com o temporal: a renda das propriedades e o cobre que o tesouro lhe pinga. Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições, as duas colunas mal impressas, caixilho, dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes, políticos, diretor e secretário, tudo se move na minha cabeça, como um bando de vermes, em cima de uma coisa amarela, gorda e mole que é, reparando-se bem, a cara balofa de Julião Tavares muito aumentada. Essas sombras se arrastam com lentidão viscosa, misturando-se, formando um novelo confuso. Afinal tudo desaparece. E, inteiramente vazio, fico tempo sem fim ocupado em riscar as palavras e os desenhos. Engrosso as linhas, suprimo as curvas, até que deixo no papel alguns borrões compridos, umas tarjas muito pretas. Se pudesse, abandonaria tudo e recomeçaria as minhas viagens. Esta vida monótona, agarrada à banca das nove horas ao meio-dia e das duas às cinco, é estúpida. Vida de sururu. Estúpida. Quando a repartição se fecha, arrasto-me até o relógio oficial, meto-me no primeiro bonde de Ponta-da-Terra. Que estará fazendo Marina? Procuro afastar de mim essa criatura. Uma viagem, embriaguez, suicídio... Penso no meu cadáver, magríssimo, com os dentes arreganhados, os olhos como duas jabuticabas sem casca, os dedos pretos do cigarro cruzados no peito fundo. Os conhecidos dirão que eu era um bom tipo e conduzirão para o cemitério, num caixão barato, a minha carcaça meio bichada. Enquanto pegarem e soltarem as alças, revezando-se no mister piedoso e cacete de carregar defunto pobre, procurarão saber quem será o meu substituto na Diretoria da Fazenda. Enxoto as imagens lúgubres. Vão e voltam, sem vergonha, e com elas a lembrança de Julião Tavares. Intolerável. Esforço-me por desviar o pensamento dessas coisas. Não sou um rato, não quero ser um rato. Tento distrair-me olhando a rua. À medida que o carro se afasta do centro sinto que me vou desanuviando. Tenho a sensação de que viajo para muito longe e não voltarei nunca. Do lado esquerdo são as casas da gente rica, dos homens que me amedrontam, das mulheres que usam peles de contos de réis. Diante delas, Marina é uma ratuína. Do lado direito, navios. Às vezes há diversos ancorados. Rolam bondes para a cidade, que está invisível, lá em cima, distante. Vida de sururu. Há quinze anos era diferente. O barulho dos bondes não deixava a gente ouvir o sino da igreja. O meu quarto, no primeiro andar, era um inferno de calor. Por isso, à hora em que os outros hóspedes iam para a escola, estudar medicina, eu dava um salto ao Passeio Público e lia, debaixo das árvores, o noticiário da polícia. Naturalmente a pensão se fechou e d. Aurora, que naquele tempo era velha, morreu. O calor aqui também é grande demais. E faltam plantas. Apenas, um pouco afastados, coqueiros macambúzios, perfilados, como se esperassem ordens. Cidade grande, falta de trabalho. O meu quarto ficava junto à escada, e à noite o cheiro do gás era insuportável. Quando escurecia, Dagoberto, estudante e repórter, vinha despejar sobre a minha cama um compêndio de anatomia e uma cesta de ossos. O bonde chega ao fim da linha, volta. Bairro miserável, casas de palha, crianças doentes. Barcos de pescadores, as chaminés dos navios, longe. D. Aurora, que tinha sobrenome inglês, às seis horas encostava-se ao guarda-roupa e rosnava, agitava os caracóis brancos, pregava os óculos nos hóspedes que comiam demais e nos que estavam em atraso. Havia um rapaz de Minas, dispéptico, que ela adorava e queria casar com a neta. Enquanto os outros mastigavam, Dagoberto esquecia o prato e falava sobre os discursos da Câmara. Retorno à cidade. Os globos opalinos do Aterro iluminam o gramado murcho e a praia branca. Os coqueiros empertigados ficam para trás. Penso numa ditadura militar, em paradas, em disciplina. Os navios também ficam para trás. A pensão, o meu quarto abafado, o focinho de d. Aurora e a cesta de ossos de Dagoberto somem-se. O carro passa pelos fundos do tesouro. É ali que trabalho. Ocupação estúpida e quinhentos mil-réis de ordenado. Rua do Comércio. Lá estão os grupos que me desgostam. Conto as pessoas conhecidas: quase sempre até os Martírios encontro umas vinte. Distraio-me, esqueço Marina que algumas ruas apenas separam de mim. Afasto-me outra vez da realidade, mas agora não vejo os navios, a recordação da cidade grande desapareceu completamente. O bonde roda para oeste, dirige-se ao interior. Tenho a impressão de que ele me vai levar ao meu município sertanejo. E nem percebo os casebres miseráveis que trepam o morro, à direita, os palacetes que têm os pés na lama, junto ao mangue, à esquerda. Quanto mais me aproximo de Bebedouro mais remoço. Marina, Julião Tavares, as apoquentações que tenho experimentado estes últimos tempos, nunca existiram. Volto a ser criança, revejo a figura de meu avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, que alcancei velhíssimo. Os negócios na fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios do copiar, cortando palha de milho para cigarros, lendo o Carlos Magno, sonhando com a vitória do partido que padre Inácio chefiava. Dez ou doze reses, arrepiadas no carrapato e na varejeira, envergavam o espinhaço e comiam o mandacaru que Amaro vaqueiro cortava nos cestos. O cupim devorava os mourões do curral e as linhas da casa. No chiqueiro alguns bichos bodejavam. Um carro de bois apodrecia debaixo das catingueiras sem folhas. Tinham amarrado no pescoço da cachorra Moqueca um rosário de sabugos de milho queimados. Quitéria, na cozinha, mexia em cumbucos cheios de miudezas, escondia peles de fumo no caritó. Eu andava no pátio, arrastando um chocalho de boi. Minha avó, sinhá Germana, passava os dias falando só, xingando as escravas, que não existiam. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva tomava pileques tremendos. Às vezes subia à vila, descomposto, um camisão vermelho por cima da ceroula de algodão encaroçado, chapéu de ouricuri, alpercatas e varapau. Nos dias santos, de volta da igreja, mestre Domingos, que havia sido escravo dele e agora possuía venda sortida, encontrava o antigo senhor escorado no balcão de Teotoninho Sabiá, bebendo cachaça e jogando três-setes com os soldados. O preto era um sujeito perfeitamente respeitável. Em horas de solenidade usava sobrecasaca de chita, correntão de ouro atravessado de um bolso a outro do colete, chinelos de trança, por causa dos calos, que não aguentavam sapatos. Por baixo do chapéu duro, a testa retinta, úmida de suor, brilhava como um espelho. Pois, apesar de tantas vantagens, mestre Domingos, quando via meu avô naquela desordem, dava-lhe o braço, levava-o para casa, curava-lhe a bebedeira com amoníaco. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva vomitava na sobrecasaca de mestre Domingos e gritava: - Negro, tu não respeitas teu senhor não, negro! Quando o carro para, essas sombras antigas desaparecem de supetão - e vejo coisas que não me excitam nenhum interesse: os focos da iluminação pública, espaçados, cochilando, piongos, tão piongos como luzes de cemitério; um palácio transformado em albergue de vagabundos; escuridões, capoeiras, barreiras cortadas a pique no monte; a frontaria de uma fábrica de tecidos; e, de longe em longe, através de ramagens, pedaços de mangue, cinzentos. À medida que nos aproximamos do fim da linha as paradas são menos frequentes. Os postes cintados de branco passam correndo, o carro está quase vazio, as recordações da minha infância precipitam-se. E a decadência de Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva precipita-se também. Estava pegando um século quando entrou a caducar. Encolhido na cama de couro cru, mijava-se todo, contava os dedos dos pés e caía na madorna. De repente acordava sobressaltado: - Sinha Germana! Meu pai largava o Carlos Magno, abria o tabaqueiro, deixava a rede, impaciente: - Que é que há? - Homem, você não me dirá onde está sua mãe? Aqui mais de uma hora chamando essa mulher! - Morreu. - Que está me dizendo? Estranhava o velho arregalando os olhos quase cegos. Quando foi isso? Camilo Pereira da Silva amolava-se: - Deixe de arrelia. Morreu o ano passado. - Tanto tempo! Dizia Trajano. E vocês calados... Punha-se a folgar com os dedos e pegava no sono. Quinze minutos depois estava berrando: - Sinha Germana! Acabou-se numa agonia leve que não queria ter fim. E enterrou-se na catacumba desmantelada que nossa família tinha no cemitério da vila. Mestre Domingos pegou na alça do caixão e declarou a meu pai que a morte é um mundéu. Fomos morar na vila. Meteram-me na escola de seu Antônio Justino, para desasnar, pois, como disse Camilo quando me apresentou ao mestre, eu era um cavalo de dez anos e não conhecia a mão direita. Aprendi leitura, o catecismo, a conjugação dos verbos. O professor dormia durante as lições. E a gente bocejava olhando as paredes, esperando que uma réstia chegasse ao risco de lápis que marcava duas horas. Saíamos em algazarra. Eu ia jogar pião, sozinho, ou empinar papagaio. Sempre brinquei só. Uma chuvinha renitente açoita as folhas da mangueira que ensombra o fundo do meu quintal, a água empapa o chão, mole como terra de cemitério, qualquer coisa desagradável persegue-me sem se fixar claramente no meu espírito. Sinto-me aborrecido, aperreado. Debaixo da chuva azucrinante, espécie de neblina pegajosa, a mangueira do quintal e as roseiras da casa vizinha estão quase invisíveis. Emendo um artigo que Pimentel me pediu, artigo feito contra vontade, só para não descontentar Pimentel. Felizmente a ideia do livro que me persegue às vezes dias e dias desapareceu. Penso em mestre Domingos, no velho Trajano, em meu pai. Não sei por que mexi com eles, tão remotos, diluídos em tantos anos de separação. Não têm nenhuma relação com as pessoas e as coisas que me cercam. Releio com desgosto o artigo que vou dar a Pimentel. Os defuntos antigos me importunam. Deve ser por causa da chuva. Nos meses compridos daqueles invernos de serra muitas vezes fiquei tardes inteiras sentado à porta da nossa casa na vila, olhando a rua que desaparecia debaixo de um lençol branco de água em pó. Os chuviscos entravam pela sala, os móveis e a roupa da gente pareciam cobrir-se de pontinhas de alfinetes. De tempos a tempos um vulto embuçado passava na calçada. O velho Acrísio, de cachimbo na boca, chegava à janela para conversar com meu pai. Não entrava: dava umas notícias, esfregando as mãos, aguentando aqueles pinguinhos que não molhavam, apenas lhe umedeciam o capote e o cachenê de lã vermelha. Agora a chuva é um pouco diferente, o nevoeiro menos denso. De longe em longe a água bate no telhado com força, depois continua a peneira que oculta o jardim da casa vizinha. Se Marina tivesse a ideia de se banhar ali àquela hora da tarde, eu não lhe veria o corpo. Talvez visse apenas uma sombra, como acontece no cinema quando se apresentam mulheres nuas. Este pensamento esquisito - Marina despida, arrepiada, coberta de carocinhos - bole comigo durante alguns minutos. Gostava de me lavar assim quando era menino. A trovoada ainda roncava no céu, e já me preparava. Às vezes a preparação durava três dias. O trovão rolava por este mundo, os relâmpagos sucediam-se com fúria. Quitéria encafuava-se, oferecia peles de fumo a Santa Clara, escondia a cabeça debaixo das cobertas e gritava: - "Misericórdia!"; meu pai largava o romance, nervoso; Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva chamava sinha Germana, que tinha morrido. Quando o aguaceiro chegava, o couro cru da cama do velho Trajano virava mingau, tanta goteira havia; a rede suja de Camilo fedia a bode; os bichos da fazenda vinham abrigar-se no copiar; o chão de terra batida ficava todo coberto de excremento. Eu tirava as alpercatas, arrancava do corpo a camisinha de algodão encardida, agarrava um cabo de vassoura, fazia dele um cavalo e saía pinoteando, pererê, pererê, pererê, até o fim do pátio, onde havia três pés de juá. Repetia o exercício, cheio de alegria doida, e gritava para os animais do curral, que se lavavam como eu. Fatigado, saltava no lombo do cavalo de fábrica, velho e lazarento, galopava até o Ipanema e caía no poço da Pedra. As cobras tomavam banho com a gente, mas dentro da água não mordiam. O poço da Pedra era uma piscina enorme. Antes de entrar nela, o Ipanema tinha dois metros de largura e arrastava-se debaixo dos garranchos de algumas quixabeiras sem folhas. Quando eu ainda não sabia nadar, meu pai me levava para ali, segurava-me um braço e atirava-me num lugar fundo. Puxava-me para cima e deixava-me respirar um instante. Em seguida repetia a tortura. Com o correr do tempo aprendi natação com os bichos e livrei-me disso. Mais tarde, na escola de mestre Antônio Justino, li a história de um pintor e de um cachorro que morria afogado. Pois para mim era no poço da Pedra que se dava o desastre. Sempre imaginei o pintor com a cara de Camilo Pereira da Silva, e o cachorro parecia-se comigo. Se eu pudesse fazer o mesmo com Marina, afogá-la devagar, trazendo-a para a superfície quando ela estivesse perdendo o fôlego, prolongar o suplício um dia inteiro... Debaixo da chuva, a mangueira do quintal está toda branca. O papagaio na cozinha bate as asas, sacudindo os salpicos que vêm da biqueira. Afago o pelo macio do meu gato mourisco, que dorme enroscado numa cadeira. As ideias ruins desaparecem. Marina desaparece. Ponho-me a vagabundear em pensamento pela vila distante, entro na igreja, escuto os sermões e os desaforos que padre Inácio pregava aos matutos: - "Arreda, povo, raça de cachorro com porco." Sento-me no paredão do açude, ouço a cantilena dos sapos. Vejo a figura sinistra de seu Evaristo enforcado e os homens que iam para a cadeia amarrados de cordas. Lembro-me de um fato, de outro fato anterior ou posterior ao primeiro, mas os dois vêm juntos. E os tipos que evoco não têm relevo. Tudo empastado, confuso. Em seguida os dois acontecimentos se distanciam e entre eles nascem outros acontecimentos que vão crescendo até me darem sofrível noção de realidade. As feições das pessoas ganham nitidez. De toda aquela vida havia no meu espírito vagos indícios. Saíram do entorpecimento recordações que a imaginação completou. A escola era triste. Mas, durante as lições, em pé, de braços cruzados, escutando as emboanças de mestre Antônio Justino, eu via, no outro lado da rua, uma casa que tinha sempre a porta escancarada mostrando a sala, o corredor e o quintal cheio de roseiras. Moravam ali três mulheres velhas que pareciam formigas. Havia rosas em todo o canto. Os trastes cobriam-se de grandes manchas vermelhas. Enquanto uma das formigas, de mangas arregaçadas, remexia a terra do jardim, podava, regava, as outras andavam atarefadas, carregando braçadas de rosas. Daqui também se veem algumas roseiras maltratadas no quintal da casa vizinha. Foi entre essas plantas que, no começo do ano passado, avistei Marina pela primeira vez, suada, os cabelos pegando fogo. Lá estão novamente gritando os meus desejos. Calam-se acovardados, tornam-se inofensivos, transformam-se, correm para a vila recomposta. Um arrepio atravessa-me a espinha, inteiriça-me os dedos sobre o papel. Naturalmente são os desejos que fazem isto, mas atribuo a coisa à chuva que bate no telhado e à recordação daquela peneira ranzinza que descia do céu dias e dias. Meu pai cochilava, encostado ao balcão. Na saleta da nossa casa, por detrás da bodega, eu recordava as lições, entorpecido. Enfiando os olhos pela janela, via na rua o meu vizinho Joaquim Sabiá, de cócoras, fazendo construções com areia molhada. Havia um grande silêncio, um silêncio incômodo. Às vezes punha-me a tossir, para me convencer de que não tinha ficado surdo. Era como se a gente houvesse deixado a Terra. De repente surgiam vozes estranhas. Que eram? Ainda hoje não sei. Vozes que iam crescendo, monótonas, e me causavam medo. Um alarido, um queixume, clamor enorme, sempre no mesmo tom. As ruas enchiam-se, a saleta enchia-se - e eu tinha a impressão de que o brado lastimoso saía das paredes, saía dos móveis. Fechava os ouvidos para não perceber aquilo: as vozes continuavam, cada vez mais fortes. Que seriam? Tentava descobrir a causa do extraordinário lamento. Supunha que eram patos gritando, embora nunca tivesse ouvido a voz dos patos. Também me inclinava a admitir que fossem sapos. Mas os sapos do açude da Penha cantavam de outra forma. Não podiam ser sapos. A verdade é que muitas vezes perguntei a mim mesmo se realmente ouvia aquele barulho grande, diferente dos outros barulhos. Perguntei naquele tempo ou perguntei depois? Não sei. Tenho-me esforçado por tornar-me criança - e em consequência misturo coisas atuais a coisas antigas. Penso na morte de meu pai. Quando voltei da escola, ele estava estirado num marquesão, coberto com um lençol branco que lhe escondia o corpo todo até a cabeça. Só ficavam expostos os pés, que iam além de uma das pontas do marquesão, pequeno para o defunto enorme. Muitas pessoas se tinham tornado donas da casa: Rosenda lavadeira, padre Inácio, cabo José da Luz, o velho Acrísio. Fui sentar-me numa prensa de farinha que havia no fundo do nosso quintal. Tentei chorar, mas não tinha vontade de chorar. Estava espantado, imaginando a vida que ia suportar, sozinho neste mundo. Sentia frio e pena de mim mesmo. A casa era dos outros, o defunto era dos outros. Eu estava ali como um bichinho abandonado, encolhido na prensa que apodrecia. Ouvia o barulho de um descaroçador de algodão, próximo, no Cavalo-Morto. E via o corredor da nossa casa, por onde passavam a batina de padre Inácio, a farda de cabo José da Luz, o vestido vermelho de Rosenda e o capote do velho Acrísio. Que ia ser de mim, solto no mundo? Pensava nos pés de Camilo Pereira da Silva, sujos, com tendões da grossura de um dedo, cheios de nós, as unhas roxas. Eram magros, ossudos, enormes. O resto do corpo estava debaixo do lençol branco, que fazia um vinco entre as pernas compridas. Eu não podia ter saudade daqueles pés horríveis, cheios de calos e joanetes. Procurava chorar - lembrava-me dos mergulhos no poço da Pedra, das primeiras lições do alfabeto, que me rendiam cocorotes e bolos. Desejava em vão sentir a morte de meu pai. Tudo aquilo era desagradável. - "Isto é um cavalo de dez anos e não conhece a mão direita." Agora eu tinha catorze, conhecia a mão direita e os verbos. Voltei à sala, nas pontas dos pés. Ninguém me viu. Camilo Pereira da Silva continuava escondido debaixo do pano branco, que apresentava no lugar da cara uma nódoa vermelha coberta de moscas. Rosenda queimava alfazema num caco de telha. Seu Acrísio não servia para nada. Era impossível saber onde se fixava o olho de padre Inácio, duro, de vidro, imóvel na órbita escura. Ninguém me viu. Fiquei num canto, roendo as unhas, olhando os pés do finado, compridos, chatos, amarelos. Sempre abafando os passos, dirigi-me novamente ao fundo do quintal, com medo daquela gente que nem me havia mandado buscar à escola para assistir à morte de meu pai. Até a preta Quitéria se esquecera de mim. Ao passar pela cozinha, encontrei-a mexendo nas panelas e lastimando-se. Sentei-me na prensa, cansado, o estômago doendo. Que iria fazer por aí à toa, miúdo, tão miúdo que ninguém me via? Encostei-me ao muro, escorreguei por cima da madeira bichada, adormeci pensando nos mergulhos do poço da Pedra, nos bolos e nos pés de Camilo Pereira da Silva. E, enquanto dormia, ouvia a cantiga dos sapos no açude da Penha, o burburinho dos intrusos que se acavalavam no corredor, o barulho do descaroçador de algodão no Cavalo-Morto. Vozes chegavam-me, confusas, e eu não conseguia apreender o sentido delas. Visões também. Via a casa da fazenda, arruinada, os bichos definhando na morrinha, o chiqueiro bodejando, relâmpagos cortando o céu. A chuva caía, eu andava pelo pátio, nu, montado num cabo de vassoura. Quem me acordou foi Rosenda, que me trazia uma xícara de café. - Muito obrigado, Rosenda. E comecei a soluçar como um desgraçado. Desde esse dia tenho recebido muito coice. Também me apareceram alguns sujeitos que me fizeram favores. Mas até hoje, que me lembre, nada me sensibilizou tanto como aquele braço estirado, aquela fala mansa que me despertava. - Obrigado, Rosenda. Iam levando o cadáver de Camilo Pereira da Silva. Corri para a sala, chorando. Na verdade chorava por causa da xícara de café de Rosenda, mas consegui enganar-me e evitei remorsos. Na casa escura, cheia das lamentações de Quitéria, não encontrei sossego. Adormeci pela madrugada. No dia seguinte os credores passaram os gadanhos no que acharam. Tipos desconhecidos entravam na loja, mediam peças de pano. Chegavam de chapéu na cabeça, cigarro no bico, invadiam os quartos, praguejavam. Enterrar os mortos, obra de misericórdia. O morto estava enterrado. Padre Inácio e os outros sumiram-se. E os homens batiam os pés com força, levavam as mercadorias, levavam os móveis, nem me olhavam, nem olhavam Quitéria, que se encolhia gemendo "Misericórdia!", como quando o trovão rolava no céu e os bichos iam abrigar-se no copiar da fazenda. Passei a noite a um canto da sala de jantar, numa rede encardida, a cabeça debaixo do cobertor, com medo da alma de Camilo Pereira da Silva. Pensava na rede armada no copiar, no poço da Pedra, no pátio branco onde se arrastavam cascavéis e jararacas. Aquilo agora tinha outro dono. O cupim continuava a roer os mourões do curral e os caibros da casa, o carro de bois apodrecia sob as catingueiras, os bichos bodejavam no chiqueiro. Mas a sombra do velho Trajano não brincava com os dedos dos pés, Amaro vaqueiro não cortava mandacaru para o gado, a cachorra Moqueca tinha morrido, Camilo Pereira da Silva não folheava o romance. Que estaria fazendo a alma de Camilo Pereira da Silva? Provavelmente rondava a casa, entrava pelas portas fechadas, olhava as prateleiras vazias. As outras almas mais antigas, Trajano, seu Evaristo, sinhá Germana, não me atemorizavam; mas aquela, tão próxima, ainda agarrada ao corpo, dava-me tremuras. O suor corria-me pelo rosto. Como estariam os pés de Camilo Pereira da Silva? Certamente estavam inchados, verdes, com pedaços ficando pretos. Seu Ivo, silencioso e faminto, vem visitar-me. Faz agrados ao gato e ao papagaio, entende-se com Vitória e arranja um osso na cozinha. Não quero vê-lo, baixo os olhos para não vê-lo. Fico de pé, encostado à mesa da sala de jantar, olhando a janela, a porta aberta, os degraus de cimento que dão para o quintal. Água estagnada, lixo, o canteiro de alfaces amarelas, a sombra da mangueira. Por cima do muro baixo ao fundo veem-se pipas, montes de cisco e cacos de vidro, um homem triste que enche dornas sob um telheiro, uma mulher magra que lava garrafas. Seu Ivo está invisível. Ouço a voz áspera de Vitória e isto me desagrada. Entro no quarto, procuro um refúgio no passado. Mas não me posso esconder inteiramente nele. Não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranquilidade, falta-me inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou. Fumo. Assisto a uma discussão do barbeiro André Laerte com o negociante Filipe Benigno. As palavras me chegam quase apagadas, destituídas de senso. É provável que não digam nada. Filipe Benigno é um pouco nebuloso: só percebo dele claramente as barbas brancas e os olhos miúdos. Mas a figura de André Laerte tem bastante nitidez. Parece um gato: anda em redor do outro como se estivesse preparando um salto para agarrá-lo. Tem um avental manchado de sangue, um bigodinho ralo e faz "Pfu!" Seu Batista, vestido em robe-de-chambre, passeia na calçada, com as mãos atrás das costas. D. Conceição, mulher de Teotoninho Sabiá, prepara milho para o xerém. Carcará solta gargalhadas que se ouvem na outra extremidade da rua. O doutor juiz de direito conta ao vigário histórias de onças e jacarés do Amazonas. Cabo José da Luz, à porta do quartel, espalha tristezas: Assentei praça. Na polícia eu vivo Por ser amigo da distinta farda... O sino da igrejinha bate a primeira pancada das ave-marias. Não, não é o sino da igreja, é o relógio da sala de jantar. Oito e meia. Preciso vestir-me depressa, chegar à repartição às nove horas. Apronto-me, calço as meias pelo avesso e saio correndo. Paro sobressaltado, tenho a impressão de que me faltam peças do vestuário. Assaltam-me dúvidas idiotas. Estarei à porta de casa ou já terei chegado à repartição? Em que ponto do trajeto me acho? Não tenho consciência dos movimentos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo fico assim. Provavelmente um segundo, mas um segundo que parece eternidade. Está claro que todo o desarranjo é interior. Por fora devo ser um cidadão como os outros, um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer. Mexo-me, atravesso a rua a grandes pernadas. Tenho contudo a impressão de que os transeuntes me olham espantados por eu estar imóvel. Imóvel. Camilo Pereira da Silva também estava imóvel, debaixo da terra. D. Conceição vinha oferecer-me comida. As meninas dela, d. Maria e Teresa, tentavam consolar-me. Retraía-me como um animal acuado, fechava os ouvidos às consolações, cerrava os olhos, apalpava a cabeça e sentia a dureza de ossos, dava estalos com os dedos e ouvia o som de ossos. - Obrigado, muito obrigado. Não precisava de nada. Os ossos de Camilo Pereira da Silva desconjuntavam-se na podridão da cova, e a alma já não me fazia medo. Era uma alma que envelhecia e estava fora da terra, provavelmente no purgatório. Quitéria rezava alto na cozinha: - Ofereço este padre-nosso e esta ave-maria às almas do purgatório. Era lá que devia estacionar uma parte de meu pai, curando uns restos de pecados. Leves pecados. Apenas muita preguiça. Por isso eu aguentava fome e ouvia as lamentações de Quitéria. Para que banda ficaria o purgatório? Seu Antônio Justino não sabia. Nem eu. Sabia onde ficavam o Rio de Janeiro, São Paulo, Minas, lugares que me atraíam, que atraem a minha raça vagabunda e queimada pela seca. Resolvi desertar para uma dessas terras distantes. Abandonei a vila, com uma trouxa debaixo do braço e os livros da escola. - "Adeus, d. Conceição. Muito obrigado pela comida com que me matou a fome. Adeus, Joaquim Sabiá, d. Maria, Teresa. Adeus, Quitéria, Rosenda, cabo José da Luz." E comecei a andar lentamente pelo caminho estreito, afastando-me da vila adormecida. Começo a andar depressa, receando encontrar o ponto encerrado. Tolice. Provavelmente tudo aquilo se passou num segundo. Tenho a impressão de que uma objetiva me pegou, num instantâneo. Ficarei assim, com a perna erguida, a pasta debaixo do braço, o chapéu embicado. Luís da Silva, a caminho da repartição, lesando, pensando em defuntos. Este mês fiz um sacrifício: dei uns dinheiros ao Moisés das prestações para amortizar a minha conta. Dr. Gouveia há de ter paciência: espera mais uns dias. Deixarei de andar pela Rua do Sol para não encontrá-lo. O que não posso é continuar a esconder-me de Moisés. Escondo-me, estive algumas semanas sem ir ao café, com receio de ver o judeu. E gosto do café, passo lá uma hora por dia, olhando as caras. Há o grupo dos médicos, o dos advogados, o dos comerciantes, o dos funcionários públicos, o dos literatos. Certos indivíduos pertencem a mais de um grupo, outros circulam, procurando familiaridades proveitosas. Naquele espaço de dez metros formam-se várias sociedades com caracteres perfeitamente definidos, muito distanciadas. A mesa a que me sento fica ao pé da vitrina dos cigarros. É um lugar incômodo: as pessoas que entram e as que saem empurram-me as pernas. Contudo não poderia sentar-me dois passos adiante, porque às seis horas da tarde estão lá os desembargadores. É agradável observar aquela gente. Com uma despesa de dois tostões, passo ali uma hora, encolhido junto à porta, distraindo-me. Pois ultimamente precisei renunciar ao café, por causa de Moisés. Ele também se esquivava. Há dias deu de cara comigo ao dobrar uma esquina e empalideceu, balbuciou na sua língua avariada: - Olá! Como vai? Estou com muita pressa. É um péssimo cobrador. Dei-lhe este mês cem mil-réis para pôr termo a esses vexames. Mas ainda devo muito, nem sei quanto. A culpa é minha. Quando me vendeu as fazendas, Moisés foi franco: - Isto é caro como o diabo. Você faz melhor negócio comprando a dinheiro noutra loja. Mas eu estava na pindaíba e precisava adquirir os trapos para Marina. Desde então venho suando para reduzir o débito. Quando me atraso, Moisés foge de mim. Agora, depois de receber o cobre, declarou-me que as mercadorias já tinham sido pagas. Infelizmente não me podia dar quitação, porque os troços que vende são do tio, judeu verdadeiro. - Está muito bem. E o constrangimento desapareceu. Às seis horas estamos de novo sentados junto à vitrina dos cigarros. Moisés fala com abundância, desforrando-se do silêncio em que estivemos ultimamente. Procura a expressão, coça a testa, franze os beiços numa careta que lhe mostra os dentes largos e diz: - Está percebendo? Sim, percebo, embora ele tenha sintaxe medonha e pronúncia incrível. Faz rodeios fatigantes, deturpa o sentido das palavras e usa esdrúxulas de maneira insensata. Escuto-o. Os ouvidos são para ele, os olhos para as figuras habituais do café. Os olhos estão quase invisíveis por baixo da aba do chapéu, e uma folha da porta oculta-me o corpo. Uma criaturinha insignificante, um percevejo social, acanhado, encolhido para não ser empurrado pelos que entram e pelos que saem. Perto um capitalista fala muito alto, e os cotovelos sobre o mármore dão-lhe na sala estreita espaço excessivo. No grupo da justiça as palavras tombam medidas, pesadas, e os gestos são lentos. Além, dois políticos cochicham e olham para os lados. Moisés comenta o jornal. Nunca vi ninguém ler com tanta rapidez. Percorre as colunas com o dedo e para no ponto que lhe interessa. Engrola, saltando linhas, aquela prosa em língua estranha, relaciona o conteúdo com leituras anteriores e passa adiante. É um dedo inteligente o do Moisés. O resto do corpo tem pouca importância; os ombros estreitos, a corcunda, os dentes que se mostram num sorriso parado. O que a gente nota é o dedo. O dedo e a voz sibilada, descontente, sempre a anunciar desgraças. Moisés é uma coruja. Acha que tudo vai acabar, tudo, a começar pelo tio, que esfola os fregueses. E eu acredito em Moisés, que não escora as suas opiniões com a palavra do Senhor, como os antigos: cita livros, argumenta. Prega a revolução, baixinho, e tem os bolsos cheios de folhetos incendiários. De repente cala-se: foi o doutor chefe de polícia que apareceu e começou a cochichar com os políticos. O dedo de Moisés some-se entre as folhas do jornal, o revolucionário esconde-se por detrás do sorriso inexpressivo. Covardia. Mas afasto este pensamento severo. Moisés não tem jeito de herói: é apenas um sujeito bom e inteligente. Por isso fiz o sacrifício de lhe dar cem mil-réis, que me vão transtornar o orçamento. Estava tão abandonado neste deserto... Só se dirigiam a mim para dar ordens: - Seu Luís, é bom modificar esta informação. Corrija isto, seu Luís. Fora daí, o silêncio, a indiferença. Agradavam-me os passageiros que me pisavam os pés, nos bondes, e se voltavam, atenciosos: - Perdão, perdão. Faz favor de desculpar. - Sem dúvida. Ora essa. Ou então: - Tem a bondade de me dizer onde fica a Rua do Apolo? - Perfeitamente, minha senhora. Vamos para lá. É o meu caminho. Agora estou defronte de um amigo, amigo que me liga pouca importância, é verdade, amigo todo entregue aos telegramas estrangeiros, mas que me custou cem mil-réis. Parece-me que até certo ponto Moisés é propriedade minha. Os cem mil-réis me vão fazer muita falta. Estremeço: dr. Gouveia entra na sala, marcha para a vitrina dos cigarros. - Vamos dar o fora, Moisés? Dois minutos depois estamos sentados num banco da Praça Montepio. Aqui há sossego, não vêm cá certos indivíduos impertinentes. O que me desgosta é ver de relance, nos bancos do centro, que a folhagem disfarça mal, pessoas atracadas. Sinto furores de moralista. Cães! Amando-se em público, descaradamente! Cães! Tremo de indignação. Depois esmoreço: julguei distinguir entre as folhas dos crótons o vulto de Marina. Foi ilusão, mas a imagem permanece. Cachorrada! Moisés fala em políticos reacionários. Encho-me de ferocidade: - Malandros! Ladrões! Agora Moisés está contando as perseguições aos judeus, na Europa. Lembro-me do tio dele e digo comigo que provavelmente a narração é exagerada. Se Moisés não fosse inteligente, com certeza muitos daqueles fatos não existiriam. Sofrimentos. Iniquidades. - Aqui há tanto disso! Mas somos fatalistas, estamos habituados e não temos imaginação como vocês. Entro a falar sobre a minha vida de cigano, de fazenda em fazenda, transformado em mestre de meninos. Quando ensinava tudo que seu Antônio Justino me ensinara, passava a outra escola. Tinha o sustento. Depois era a caserna. Todas as manhãs nos exercícios. - "Meia-volta! Ordinário!" As peças do fuzil, marchas na lama, a bandeira nacional, o hino, as tarimbas sujas, os desaforos do sargento. Em seguida vinha a banca de revisão: seis horas de trabalho por noite, os olhos queimando junto a um foco de cem velas, cinco mil-réis de salário, multas, suspensões. E coisas piores, que me envergonham e não conto a Moisés. Empregos vasqueiros, a bainha das calças roída, o estômago roído, noites passadas num banco, importunado pelo guarda. Farejava o provinciano de longe, conhecia o nordestino pela roupa, pela cor desbotada, pela pronúncia. E assaltava-o: - Um filho do nordeste, perseguido pela adversidade, apela para a generosidade de V. Exª. Valorizava a esmola: - Trago um romance entre os meus papéis. Compus um livro de versos, um livro de contos. Sou obrigado a recorrer aos meus conterrâneos. Até que me arranje, até que possa editar as minhas obras. Recebia, com um sorriso, o níquel e o gesto de desprezo. O frege-moscas fedia a vinho podre, e o galego, de tamancos, coberto de nódoas, era asqueroso. Mais tarde, já aqui em Maceió, gastando sola pelas repartições, indignidades, curvaturas, mentiras, na caça ao pistolão. - Escrevi muito atacando a república velha, doutor; sacrifiquei-me, endividei-me, estive preso por causa da ideologia, doutor. Afinal, para se livrarem de mim, atiraram-me este osso que vou roendo com ódio. - Chegue mais cedo amanhã, seu Luís. E eu chego. - Informe lá, seu Luís. E eu informo. Como sou diferente de meu avô! Um dia um cabra de Cabo Preto apareceu na fazenda com uma carta do chefe. Deixou o clavinote encostado a um dos juazeiros do fim do pátio, e de longe ia varrendo o chão com a aba do chapéu de couro. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva soletrou o papel que o homem lhe deu e mandou Amaro laçar uma novilha. O cabra jantou, recebeu uma nota de vinte mil-réis, que naquele tempo era muito dinheiro, e atravessou o Ipanema, tangendo o bicho. Dia de Natal meu avô foi à vila, com a mulher, e encontrou no caminho o grupo de Cabo Preto, que se meteu na capoeira para não assustar a dona, sinha Germana, de saias arregaçadas, escanchada na sela, um mosquetão na maçaneta, não viu nada, mas meu avô fez um gesto de agradecimento aos angicos e aos mandacarus que marginavam a estrada. Quando a política de padre Inácio caiu, o delegado prendeu um cangaceiro de Cabo Preto. O velho Trajano subiu à vila e pediu ao doutor juiz de direito a soltura do criminoso. Impossível. Andou, virou, mexeu, gastou dinheiro com habeas corpus - e o doutor duro como chifre. - Está direito, exclamou Trajano plantando o sapato de couro cru na palha da cadeira do juiz. Eu vou soltar o rapaz. No sábado reuniu o povo da feira, homens e mulheres, moços e velhos, mandou desmanchar o cercado do vigário, armou todos com estacas e foi derrubar a cadeia. Está aí uma história que narro com satisfação a Moisés. Ouve-me desatento. O que lhe interessa na minha terra é o sofrimento da multidão, a tragédia periódica das secas. Procuro recordar-me dos verões sertanejos, que duram anos. A lembrança chega misturada com episódios agarrados aqui e ali, em romances. Dificilmente poderia distinguir a realidade da ficção. De resto a dor dos flagelados naquele tempo não me fazia mossa. Penso em coisas percebidas vagamente: o gado, escuro de carrapatos, roendo a madeira do curral; o cavalo de fábrica, lazarento e com esparavões; bodes definhando na morrinha; o carro de bois apodrecendo; na catinga parda, manchas brancas de ossadas e voo negro dos urubus. Tento lembrar-me de uma dor humana. As leituras auxiliam-me, atiçam-me o sentimento. Mas a verdade é que o pessoal da nossa casa sofria pouco. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva caducava; meu pai vivia preocupado com os doze pares de França; sinha Germana tinha morrido; Quitéria, coitada, era bruta demais e por isso insensível. Os outros moradores da fazenda, as criaturas que viviam em ranchos de palha construídos nas ribanceiras do Ipanema, não se queixavam. José Baía falava baixo e ria sempre. Sinha Terta rezava novenas e fazia partos pela vizinhança. Amaro vaqueiro alimentava-se, nas secas, com sementes de mucunã lavadas em sete águas, raiz de imbu, miolo de xiquexique, e de tempos a tempos furtava uma cabra no chiqueiro e atirava a culpa à suçuarana. Dores só as minhas, mas estas vieram depois. Veja também: |
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