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Trechos do livro Memórias de Adriano - Marguerite Yourcenar

Do Banco de Dados da Folha

animula
vagula
blandula

pequena alma
terna flutuante


Meu caro Marco,

Estive esta manhã com meu médico Hermógenes, recém-chegado à Vila depois de longa viagem através da Ásia. O exame deveria ser feito em jejum; por essa razão havíamos marcado a consulta para as primeiras horas da manhã. Deitei-me sobre um leito depois de me haver despojado do manto e da túnica. Poupo-te detalhes que te seriam tão desagradáveis quanto a mim mesmo, omitindo a descrição do corpo de um homem que avança em idade e prepara-se para morrer de uma hidropisia do coração.

Digamos somente que tossi, respirei e retive o fôlego segundo as indicações de Hermógenes, alarmado a contragosto pelos rápidos progressos do meu mal e pronto a lançar no opróbrio o jovem Iolas, que me assistiu em sua ausência. É difícil permanecer imperador na presença do médico e mais difícil permanecer homem. O olho do clínico não via em mim senão um amontoado de humores, triste amálgama de linfa e sangue. Esta manhã, pela primeira vez, ocorreu-me a idéia de que meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro e mais meu conhecido do que minha própria alma, não é senão um monstro sorrateiro que acabará por devorar seu próprio dono.

Paz... Amo meu corpo. Ele me serviu muito e de muitas maneiras: não lhe regatearei agora os cuidados necessários. Mas já não creio - como Hermógenes pretende ainda - nas maravilhosas virtudes das plantas, na dosagem exata dos sais minerais que ele foi buscar no Oriente. Esse homem, embora perspicaz, cumulou-me de vagas expressões de conforto, demasiado banais para iludir a quem quer que seja. Ele sabe o quanto odeio esse gênero de impostura, mas não é impunemente que se exerce a medicina durante mais de trinta anos! Perdôo a esse bom servidor a tentativa de ocultar-me minha própria morte. Hermógenes é um sábio e é também bastante judicioso. Sua probidade é superior à de qualquer outro médico da corte. Tenho a fortuna de ser o mais bem tratado dos doentes. Mas nada pode ultrapassar os limites estabelecidos; minhas pernas intumescidas já não me podem sustentar durante as longas cerimônias romanas. Sufoco! Tenho sessenta anos!

Numa coisa não te iludas porém; não estou ainda bastante enfraquecido para ceder às alucinações do medo, quase tão absurdas quanto as da esperança, e naturalmente muito mais incômodas. Fosse-me necessário exceder-me e preferiria fazê-lo no sentido de confiar: nada teria a perder e sofreria menos.

Esse fim tão próximo não é necessariamente imediato: deito-me ainda, cada noite, com a esperança de acordar pela manhã. Dentro dos limites intransponíveis de que falava ainda há pouco, conto defender minha posição passo a passo e até mesmo reconquistar algumas polegadas do terreno perdido. Ainda não atingi a idade em que a vida para cada homem é uma derrota consumada. Dizer que meus dias estão contados nada significa! Assim foi sempre. E assim sempre será para todos nós. Mas a incerteza do lugar, da ocasião e do modo, incerteza que nos impede de ver distintamente esse fim para o qual avançamos inexoravelmente, diminui para mim à medida que progride minha mortal enfermidade.

Qualquer um de nós pode morrer a qualquer instante, mas um enfermo sabe, por exemplo, que não mais estará vivo dentro de dez anos. Minha margem de hesitação já não abrange anos, apenas alguns meses. Minhas probabilidades de morrer de uma punhalada no coração ou de uma queda de cavalo são mínimas; a peste parece improvável; a lepra ou o câncer estão definitivamente afastados. Já não corro o risco de tombar nas fronteiras atingido por um machado caledônio, ou trespassado por uma flecha parta. As tempestades não souberam aproveitar-se das ocasiões oferecidas e o feiticeiro que me predisse morte por afogamento parece não ter tido razão. Morrerei no máximo em Tíbur, em Roma, ou em Nápoles, e uma crise de sufocação se encarregará da tarefa. Serei abatido pela décima ou pela centésima crise? Aí está toda a questão. Como o viajante que navega entre as ilhas do Arquipélago vê a bruma luminosa levantar-se à tarde, descobrindo, pouco a pouco, a linha do litoral, começo a discernir o perfil de minha morte.

Alguns aspectos de minha vida já se assemelham às salas desguarnecidas de um vasto palácio que o proprietário empobrecido desiste de ocupar por inteiro. Já não caço: se não houvesse senão eu para perturbá-los nas suas ruminações e nos seus folguedos, os cabritos monteses das colinas da Etrúria poderiam ficar completamente tranqüilos. Sempre entretive com a Diana das Florestas as múltiplas e apaixonadas relações de um homem com o objeto amado. Adolescente, a caça ao javali proporcionou-me os primeiros contactos com o comando e com o perigo.

Entregava-me a esse desporto com paroxismo e meus excessos levaram Trajano a admoestar-me. A distribuição aos cães, numa clareira da Espanha, das entranhas dos animais abatidos é minha mais antiga experiência da morte, da coragem, da piedade pelas criaturas e do prazer trágico de vê-las sofrer. Homem feito, a caça aliviava-me o espírito de tantas lutas secretas com adversários ora muito sagazes, ora muito obtusos, ora demasiado fracos, ora fortes demais para mim. A luta equilibrada entre a inteligência humana e a astúcia dos animais selvagens parecia-me extraordinariamente adequada à comparação com os embustes dos homens. Imperador, minhas caçadas na Toscana serviram-me para avaliar a coragem e os recursos dos altos funcionários; nessas ocasiões, escolhi ou eliminei mais de um homem de Estado. Mais tarde, na Bitínia e na Capadócia, fiz das grandes batidas um pretexto para festas, um triunfo outonal nos bosques da Ásia.

Morreu jovem, porém, o companheiro de minhas caçadas e, depois de sua partida, meu gosto pelos prazeres violentos diminuiu bastante. Entretanto, mesmo aqui em Tíbur, o resfolegar súbito de um cervo sob a folhagem é suficiente para despertar em mim o mais antigo dos instintos, por obra e graça do qual me sinto tanto leopardo quanto imperador. Quem sabe? É possível que eu seja assim avesso ao derramamento de sangue humano por tê-lo derramado tanto quando se tratava de animais ferozes. E dizer que, não raro e secretamente, eu os preferia aos homens! De qualquer modo, porém, a lembrança das feras é-me tão familiar ainda, que me custa não prosseguir narrando intermináveis histórias de caça que poriam à prova a paciência dos meus convidados da noite.

Sem dúvida, a reminiscência do dia da minha adoção é deliciosa, mas a recordação dos leões abatidos na Mauritânia não o é menos.

A renúncia à equitação é sacrifício mais penoso ainda; uma fera não era senão um adversário; o cavalo era um amigo. Se me fosse dado optar por minha condição neste mundo, teria escolhido a de Centauro. Entre mim e Borístenes o entendimento era de uma precisão matemática: o cavalo obedecia-me como a seu próprio cérebro e não como a seu dono. Terei algum dia conseguido tanto de um homem?

Uma autoridade tão absoluta comporta, como qualquer outra, riscos de erro por parte do homem que a exerce, mas o prazer de tentar o impossível em matéria de saltos de obstáculos era intenso demais para que eu lamentasse um ombro deslocado ou uma costela partida. Meu cavalo substituía as mil noções em torno do título, da posição e do nome, que complicam as relações humanas, pelo simples conhecimento do meu peso.

Partilhando meus entusiasmos, ele sabia exatamente - e melhor do que eu mesmo talvez - o ponto onde minha vontade se divorciava de minha força. Ao sucessor de Borístenes já não inflijo o fardo de um corpo doente, de músculos amolecidos, e fraco demais para içar-se por si mesmo à sela. Meu ajudante de campo, Céler, exercita-o neste momento na estrada de Preneste. Minhas antigas experiências com a velocidade dos galopes permitem-me agora partilhar o prazer de cavalo e cavaleiro lançados a toda velocidade sob o sol e o vento. Quando Céler salta do cavalo, com ele retomo contacto com o solo. Outro tanto passa-se com a natação: a ela renunciei, mas continuo participando do prazer do nadador acariciado pela água.

Correr, mesmo no mais curto percurso, ser-me-ia hoje tão impossível quanto para a pesada estátua de um César de pedra. Posso, entretanto, lembrar-me de minhas carreiras de criança pelas colinas secas da Espanha, do brinquedo brincado comigo mesmo, no qual ia até os limites do fôlego, seguro de que o coração perfeito e os pulmões intactos restabeleceriam o equilíbrio.

Tenho, com o mais insignificante dos atletas que treina sua corrida ao longo do estádio, um entendimento tão perfeito que inteligência por si só não me poderia proporcionar nunca. Assim, de cada arte praticada, retiro hoje um conhecimento que me compensa em parte dos prazeres perdidos. Acreditei, e nos meus bons momentos ainda acredito, que seria possível partilhar da existência de todos os homens e que essa simpatia seria uma das formas irrevogáveis da imortalidade.

Momentos houve em que essa compreensão tentou ultrapassar o humano, indo do nadador à própria vaga. Mas ali nada de positivo me foi explicado porque entrara no domínio das metamorfoses do sonho.

Comer em excesso é hábito romano. Eu, porém, fui sóbrio por volúpia. Hermógenes nada teve que modificar em meu regime a não ser talvez a impaciência que me obrigava a devorar, não importa onde fosse e a qualquer hora, a primeira iguaria servida para saciar de uma só vez as exigências da minha fome. Não seria próprio do homem rico, que não conheceu jamais senão uma privação voluntária e disso não fez mais do que uma experiência a título provisório, como um dos incidentes mais ou menos excitantes da guerra e da viagem, vangloriar-se de não se exceder à mesa. Embriagar-se em certos dias de festa foi sempre a ambição, a alegria e o orgulho dos pobres. Agradava-me o odor das carnes assadas e o ruído das marmitas raspadas nas festas do exército, e que os banquetes do acampamento (ou que num acampamento se pode chamar de banquete) fossem o que deveriam ser sempre: um alegre e grosseiro contrapeso às privações dos dias de trabalho. Tolerava bastante bem o odor das frituras nas praças públicas no tempo das Saturnais.

Entretanto, os festins romanos causavam-me tanta repugnância e tanto tédio que, acreditando às vezes morrer no curso de uma exploração ou de uma expedição, dizia a mim mesmo para reconfortar-me: pelo menos nunca mais jantarei! Não me faças a injustiça de tomar-me por um vulgar renunciador: uma operação que tem lugar duas ou três vezes por dia, e cuja finalidade é alimentar a vida, merece certamente todas as nossas atenções. Comer um fruto é fazer entrar em si mesmo um belo objeto vivo, estranho e nutrido como nós pela terra. É consumar um sacrifício no qual nós nos preferimos ao objeto. Jamais mastiguei a crosta do pão das casernas sem maravilhar-me de que essa massa pesada e grosseira pudesse transformar-se em sangue, calor e, talvez, em coragem. Ah! por que o meu espírito, nos seus melhores momentos, não possui senão uma pequena parte dos poderes assimiladores do meu corpo?

Foi em Roma, durante os longos banquetes oficiais, que me aconteceu meditar nas origens relativamente recentes do nosso luxo e naquela raça de agricultores parcimoniosos e de soldados frugais, acostumados a nutrir-se de alho e cevada, subitamente deslumbrados pela conquista, devorando as iguarias complicadas da cozinha asiática com a rusticidade de camponeses esfomeados. Nossos Romanos empanturram-se agora de aves delicadas, afogam-se em molhos e envenenam-se com especiarias. Um gastrônomo, um discípulo de Apácio, orgulha-se da sucessão dos serviços, da série de pratos doces ou picantes, leves ou pesados que compõem a magnífica seqüência dos seus banquetes. Seria mais desejável que cada iguaria fosse servida separadamente, assimilada em jejum, sabiamente degustada por um apreciador de papilas intactas. Apresentadas confusamente, numa profusão banal e cotidiana, elas formam no paladar e no estômago uma mistura detestável, na qual o odor, o gosto e a própria substância essencial perdem seu valor peculiar e sua deliciosa identidade.

O pobre Lúcio comprazia-se outrora em preparar-me pratos raros; suas tortas de faisão, com a sábia dosagem de presunto e especiarias, revelavam uma arte tão consumada como a do músico ou do pintor. Entretanto, eu deplorava secretamente a carne pura da linda ave. A Grécia era bastante superior nesse sentido: seu vinho resinoso, seu pão salpicado de sementes de gergelim, seus peixes assados na grelha, à beira-mar, escurecidos aqui e ali pelo fogo e temperados de quando em quando pelo estalido de um grão de areia, satisfaziam simplesmente o apetite sem cercar de excessivas complicações a mais pura das nossas alegrias.

Saboreei numa sórdida espelunca de Egina ou de Falera alimentos tão frescos, que se conservavam divinamente puros a despeito dos dedos imundos do moço da taverna. Eram escassos, mas tão suficientes que pareciam conter, sob a forma mais resumida, uma certa essência de imortalidade. A carne cozida nas noites das caçadas possuía uma espécie de qualidade sacramental que nos levava muito longe, quase além das origens selvagens das raças. O vinho inicia-nos nos mistérios vulcânicos do solo e nas riquezas minerais ocultas. Uma taça de Samos degustada ao meio-dia, em pleno sol, ou, ao contrário, saboreada numa noite de inverno, num estado de fadiga tal que nos permita sentir no fundo do diafragma seu fluxo quente, sua abrasadora dispersão ao longo das artérias, é uma sensação quase sagrada e, por vezes, demasiado forte para um cérebro humano. Não reencontro essa sensação no mesmo estado de pureza nos vinhos numerados das adegas de Roma, e impacienta-me o pedantismo dos grandes conhecedores de vinhos.

Mais primitivamente ainda, a água bebida na concha da mão ou na própria fonte faz correr em nós o sal mais secreto da terra e toda a chuva do céu. A própria água é uma delícia da qual o doente que sou agora não deve usar senão com parcimônia. Não importa, mesmo na agonia e ainda que de mistura com o amargor das últimas poções, tentarei sentir sua fresca insipidez nos meus lábios.

Experimentei rapidamente a abstinência de carne nas escolas de filosofia, onde convém provar de uma vez por todas cada método de conduta. Mais tarde, na Ásia, vi os gimnossofistas indianos desviarem a cabeça dos quartos de gazela e dos cordeiros fumegantes servidos na tenda de Osroés.

Mas essa prática, na qual tua jovem austeridade descobre encanto, exige cuidados mais complicados do que os da própria gastronomia. Ela nos afasta com exagero ostensivo do comum dos homens, numa função quase sempre pública e à qual preside geralmente a amizade ou a pompa.

Prefiro nutrir-me por toda a vida de patos gordos e galinhas-d'angola a ser acusado por meus convidados, em cada refeição, de ostentação de ascetismo. Muitas vezes, valendo-me de alguns frutos secos, ou do conteúdo de um copo lentamente absorvido, tentei evitar que meus convidados percebessem que os pratos elaborados por meus melhores cozinheiros o eram sobretudo para eles e que a minha curiosidade por essas iguarias há muito se esgotara. Falta ao príncipe a latitude de que goza o filósofo: não pode permitir-se discordar dos demais ao mesmo tempo. E os deuses sabem que meus pontos de discordância eram numerosos, embora estivesse persuadido de que muitos deles eram invisíveis. Os escrúpulos religiosos dos gimnossofistas e sua repugnância pelas carnes sangrentas ter-me-iam impressionado, se não perguntasse a mim mesmo em que o sofrimento da erva que se corta diferia essencialmente do sofrimento dos carneiros que se degolam. E refletia se nosso horror ante os animais assassinados não estaria condicionado ao fato de nossa sensibilidade pertencer ao mesmo reino. Mas em certos momentos da vida, nos períodos de jejum ritual por exemplo, ou no curso das iniciações religiosas, conheci as vantagens espirituais e também os perigos das diferentes formas de abstinência e até da inanição voluntária. Falo desses estados próximos da vertigem em que o corpo, em parte alijado do seu peso, penetra num mundo para o qual não foi feito e que prefigura a fria leveza da morte. Em outros momentos, essas experiências permitiram-me brincar com a idéia do suicídio progressivo, da morte por inanição como a de certos filósofos, espécie de deboche ao inverso, no qual se vai até o esgotamento da substância humana. Mas desagradou-me sempre aderir totalmente a um sistema: jamais teria permitido que um escrúpulo me privasse do direito de empanturrar-me de salsichas se acaso me apetecessem ou se este fosse o único alimento disponível.

Os cínicos e os moralistas concordam em colocar a volúpia do amor entre os prazeres ditos grosseiros, como o prazer de comer e de beber, declarando-a, contudo, menos indispensável do que aqueles, visto que eles podem perfeitamente prescindir dela. Do moralista tudo se espera, mas espanto-me que o cínico se tenha enganado. Admitamos que uns e outros receiem seus próprios demônios, seja porque lhes resistam, seja porque se lhes entreguem, esforçando-se por aviltar o prazer a fim de lhe tirar o poder quase terrível sob o qual sucumbem, e diminuir o estranho mistério no qual se sentem perdidos.

Acreditaria nessa associação do amor às alegrias puramente físicas (supondo-se que tais alegrias existam) no dia em que visse um gastrônomo soluçar de prazer diante do seu prato favorito, tal como o amante sobre um ombro amado. De todos os jogos, o do amor é o único capaz de transtornar a alma e, ao mesmo tempo, o único no qual o jogador se abandona necessariamente ao delírio do corpo. Não é indispensável que aquele que bebe abdique da razão, mas o amante que conserva a sua não obedece inteiramente ao deus do amor.

Tanto a abstinência quanto o excesso não engajam senão o homem só. Salvo no caso de Diógenes, cujas limitações e caráter de racional pessimista se definem por si mesmos, toda experiência sensual nos coloca em face do Outro, acarretando-nos as exigências e as servidões da escolha. Não conheço, fora do amor, outra situação em que o homem deva decidir-se por motivos mais simples e mais inelutáveis. No amor, o objeto escolhido deve valer exatamente seu peso bruto em prazer, e é ainda no amor que o amante da verdade tem maiores probabilidades de julgar a nudez da criatura. A partir do desnudamento total, comparável ao da morte, de uma humildade que ultrapassa a da derrota e a da prece, maravilho-me ao ver renovar-se, cada vez, a complexidade das recusas, das responsabilidades, das promessas, das pobres confissões, das frágeis mentiras, dos compromissos apaixonados entre nosso prazer e o prazer do Outro, tantos laços impossíveis de romper e tão depressa rompidos! Esse jogo cheio de mistérios, que vai do amor de um corpo ao amor de uma pessoa, pareceu-me belo o bastante para consagrar-lhe uma parte de minha vida.

As palavras enganam, especialmente as do prazer, que comportam as mais contraditórias realidades, desde as noções de aconchego, doçura e intimidade dos corpos, até as da violência, da agonia e do grito. A pequena frase obscena de Posidônio sobre o atrito de duas parcelas de carne, que te vi copiar nos teus cadernos escolares com aplicação de menino ajuizado, é incapaz de definir o fenômeno do amor, assim como a corda que o dedo faz vibrar não pode explicar o milagre dos sons. Essa frase insulta menos a volúpia do que à própria carne, esse instrumento de músculos, sangue e epiderme, essa nuvem vermelha de que a alma é o relâmpago.

Confesso que a razão permanece confusa em presença do prodígio do amor, da estranha obsessão que faz com que essa mesma carne, que tão pouco nos preocupa quando compõe nosso corpo, limitando-nos somente a lavá-la, nutri-la e, se possível, impedi-la de sofrer, possa inspirar-nos uma tal paixão de carícias simplesmente porque é animada por uma personalidade diferente da nossa e porque representa certos traços de beleza sobre os quais, aliás, os melhores juízes não estariam de acordo.

Aqui, como nas revelações dos Mistérios, tudo se passa além do alcance da lógica humana. A tradição popular não se enganou ao ver no amor uma forma de iniciação e um dos pontos onde o secreto e o sagrado se tocam. A experiência sensual equipara-se ainda aos Mistérios quando a primeira aproximação provoca nos não iniciados o efeito de um rito mais ou menos assustador, escandalosamente desligado de todas as funções até então familiares, como comer, beber e dormir, parecendo antes motivo de gracejo, vergonha, ou terror. Da mesma maneira que a dança das Mênades ou o delírio dos Coribantes, nosso amor arrasta-nos para um universo diferente, onde, em situação normal, nos é vedada a entrada e onde cessamos de nos orientar, uma vez apagado o ardor e extinto o prazer.

Cravado no corpo amado como um crucificado à sua cruz, penetrei em certos segredos da vida que começam a desvanecer-se da minha lembrança por efeito da mesma lei que faz com que o convalescente, depois de curado, cesse de encontrar-se nas misteriosas verdades do seu mal, e que o prisioneiro posto em liberdade esqueça a tortura, e o triunfador a embriaguez da glória.

Por vezes sonhei elaborar um sistema de conhecimento humano baseado no erotismo. Uma teoria do contacto na qual o mistério e a dignidade de outrem consistiriam precisamente em oferecer ao Eu esse ponto de ligação com um mundo desconhecido. A volúpia seria, nessa filosofia, a forma mais completa e mais especializada de aproximação com o Outro, uma técnica a mais colocada a serviço do conhecimento de uma individualidade estranha à nossa.

Nos encontros, mesmo os menos sensuais, é ainda no contacto que a emoção nasce ou morre, tal como acontece com a mão um tanto repugnante da velha que me apresenta uma petição, a fronte úmida do meu pai em agonia, ou a chaga lavada de um ferido. As próprias relações mais intelectualizadas, ou as mais neutras, ocorrem através desse sistema de sinais materiais: o olhar subitamente iluminado do tribuno a quem explico determinada manobra numa manhã de batalha; a saudação impessoal do subalterno que nossa passagem imobiliza em atitude de obediência; o olhar amistoso do escravo a quem agradeço por trazer-me uma bandeja; ou a expressão apreciadora de um velho amigo ante o camafeu grego com que acabamos de presenteá-lo. Com a maior parte das pessoas, os mais ligeiros ou mais superficiais desses contactos bastam a nosso desejo, ou até o excedem.

Que esses mesmos contactos insistam e se multipliquem em torno de uma criatura única até bloqueá-la toda inteira; que cada detalhe de um corpo apresente para nós tantas significações perturbadoras como os traços de um rosto; que um único ser, em vez de inspirar-nos quando muito irritação, prazer ou aborrecimento, nos obsidie como uma melodia ou nos atormente como um problema; que esse ser passe da periferia do nosso universo ao seu centro, que se torne mais indispensável do que nós próprios, e estará realizado o admirável prodígio: assistiremos então à invasão da carne pelo espírito, e não mais um passatempo do corpo.

Tais conceitos sobre o amor poderiam conduzir-me a uma carreira de sedutor. Se não a empreendi foi, sem dúvida, por ter feito coisa melhor. À falta de gênio, semelhante carreira requer cuidados e estratagemas para os quais não me sentia dotado. As armadilhas preparadas, sempre as mesmas, a rotina condicionada a contínuas aproximações e limitada pela própria conquista, entediaram-me.

A técnica do grande sedutor exige, na passagem de um a outro objeto, uma facilidade e uma indiferença de que não me sinto capaz. Por outro lado, devo dizer que as pessoas que amei deixaram-me mais vezes do que as deixei. Jamais compreendi que alguém pudesse saciar-se de um ser.

A ânsia apaixonada de aquilatar exatamente todas as riquezas que um novo amor nos traz, de observá-lo transformar-se, vê-lo envelhecer talvez, não condiz com a multiplicidade de conquistas. Acreditei outrora que um certo gosto pela beleza substituiria em mim a virtude, que eu saberia imunizar-me contra as solicitações demasiado grosseiras. Enganei-me, todavia. O apreciador da beleza acaba por descobri-la não importa onde, como o filão de ouro nos mais ignóbeis veios, para experimentar, ao manusear essas obras-primas fragmentárias, sujas ou quebradas, a emoção de um conhecedor solitário ao colecionar uma peça supostamente vulgar.

O obstáculo mais sério para o homem de gosto é uma posição de eminência nos negócios humanos, onde o poder quase absoluto comporta os maiores riscos de adulação e hipocrisia. O simples pensamento de que alguém possa dissimular em minha presença, por pouco que seja, é capaz de levar-me a lastimá-lo, desprezá-lo e até odiá-lo. Tenho sofrido essas desvantagens da minha fortuna como um homem pobre sofre os inconvenientes da sua miséria. Um passo a mais e teria aceitado a ficção que consiste em acreditar que seduzimos quando sabemos que apenas nos impomos, coisa que é o começo do desencanto ou do cabotinismo.

Aos estratagemas da sedução aqui expostos, acabaríamos por preferir as verdades simples do deboche, se aí também não prevalecesse a mentira. Em princípio, estou pronto a admitir que a prostituição seja uma arte como a massagem ou os penteados, mas a custo suporto barbeiros e massagistas. Nada mais sórdido do que um cúmplice. O olhar oblíquo do proprietário da taverna que me reserva seu melhor vinho e, conseqüentemente, dele priva a outro, bastava, na minha juventude, para saturar-me dos divertimentos de Roma. Desagrada-me que alguém julgue poder satisfazer meu desejo, prevê-lo e adaptar-se mecanicamente ao que supõe ser minha preferência.

Esse reflexo imbecil e deformado de mim mesmo, que me oferece nesses momentos um cérebro humano, por pouco me faria preferir os lamentáveis efeitos do asceticismo. Se a lenda não exagera os excessos de Nero, os sábios requintes de Tibério, teria sido preciso que esses consumidores de prazeres possuíssem sentidos muito embotados e um singular desprezo pelos homens para se sujeitarem a um sistema tão complicado e, ao mesmo tempo, tolerarem assim que outros os ridicularizassem ou que se aproveitassem deles. Quanto a mim, se renunciei de certa maneira a essas formas maquinais de prazer, ou nelas não me aprofundei muito, devo-o mais à minha sorte do que a uma virtude incapaz de resistir a coisa alguma. Naturalmente, ao envelhecer, poderia cair nessas práticas como não importa em que espécie de confusão ou de esgotamento. A enfermidade e a morte relativamente próxima salvar-me-ão da repetição monótona dos mesmos gestos, semelhante à sabatina da lição há muito decorada.

De todas as venturas que lentamente me abandonam, o sono é uma das mais preciosas, embora seja das mais comuns também. Um homem que dorme pouco e mal, apoiado sobre dezenas de almofadas, medita com vagar sobre essa volúpia diferente. Concordo que o sono mais perfeito é necessariamente um complemento do amor: repouso tranqüilo, refletido sobre dois corpos.

Mas o que me interessa aqui é o mistério, específico do sono saboreado por si mesmo, o incontrolável e arriscado mergulho a que se aventura todas as noites o homem nu, só e desarmado, num oceano onde tudo é novo: cores, densidades, o próprio ritmo da respiração, e onde reencontramos os mortos. O que nos tranqüiliza no sono é a certeza de que dele retornamos, e retornamos os mesmos, já que uma estranha interdição nos impede de trazer conosco o resíduo exato dos nossos sonhos. Outra coisa nos tranqüiliza ainda: é que ele nos cura temporariamente da fadiga pelo mais radical dos processos, isto é, arranjando para que cessemos de existir durante algumas horas. Nisso, como em outras coisas, o prazer e a arte consistem em nos abandonarmos conscientemente a essa bem-aventurada inconsciência, consentindo em sermos sutilmente mais fracos, mais leves, mais pesados e mais confusos do que nós mesmos.

Voltarei mais tarde aos habitantes extraordinários de nossos sonhos. Por ora, prefiro falar de certas experiências do sono puro e do puro despertar, um e outro confinando com a morte e com a ressurreição. Hoje, procuro reencontrar a antiga sensação dos sonos fulminantes da adolescência, quando adormecemos completamente vestidos sobre os livros, súbito transportados para fora da matemática e dos tratados de direito, e mergulhados num sono sólido e profundo, tão cheio de energia não consumida, que poderíamos experimentar, por assim dizer, a exata sensação de existir através das pálpebras abaixadas.

Evoco ainda os sonos repentinos sobre a terra nua, dentro da floresta, após fatigantes jornadas de caça. Despertava-me o ladrido dos cães ou o peso de suas patas apoiadas sobre meu peito. O eclipse era tão absoluto que eu poderia, cada vez, encontrar-me outro. Admirava-me ou, às vezes, entristecia-me o rígido ajustamento que me trazia de tão longe para este estreito cantão de humanidade que sou eu próprio. De que valem as particularidades às quais damos tanto valor, visto que contavam tão pouco para o ser adormecido e livre que, por um segundo, antes de reentrar a contragosto na pele de Adriano, chegava a saborear quase conscientemente a sensação de ser um homem vazio com uma existência sem passado?

Por outro lado, a doença e a idade operam também seus prodígios e recebem do sono outras formas de bênção. Foi em Roma, há cerca de um ano, depois de um dia particularmente exaustivo, que conheci uma dessas tréguas em que o esgotamento das forças operava os mesmos milagres, ou antes, outros milagres semelhantes às reservas inesgotáveis de outrora. Não vou senão raramente à cidade, onde procuro cumprir, num só dia, o maior número possível de obrigações.

O dia fora desagradavelmente sobrecarregado: uma sessão do Senado seguira-se de outra no tribunal e de uma discussão interminável com um dos magistrados das finanças, e, finalmente, de uma cerimônia religiosa impossível de ser abreviada, durante a qual a chuva caiu sem cessar.

Eu próprio programara tantas atividades diferentes sem intervalos, deixando entre elas o menor espaço de tempo possível para as importunações e bajulações inúteis. O regresso a cavalo foi um dos meus últimos trajetos no gênero. Cheguei à Vila indisposto, doente, sentindo frio como só se sente quando o sangue se recusa a circular nas artérias. Céler e Chábrias desdobraram-se em cuidados, mas a própria solicitude pode ser fatigante, ainda quando sincera. Recolhido a meus aposentos, engoli algumas colheradas de um caldo quente que eu mesmo preparei, não por suspeita como muitos pensam, mas porque só assim poderia dar-me ao luxo de estar só.

Deitei-me em seguida. O sono parecia estar tão distante de mim como a saúde, a juventude e a força.

Todavia, adormeci. Ao despertar, a ampulheta provou-me que eu não havia dormido senão uma hora. Um curto momento de adormecimento total na minha idade torna-se o equivalente dos sonos que duravam outrora toda uma meia revolução dos astros. Meu tempo passou a medir-se por unidades infinitesimais. Uma única hora fora suficiente para operar o humilde e surpreendente prodígio: o calor do sangue reaquecia-me as mãos; meu coração e meus pulmões recomeçavam a funcionar com uma espécie de boa vontade. A vida corria como um manancial não muito abundante, mas fiel. O sono, em curto espaço de tempo, havia reparado meus excessos na virtude com a mesma imparcialidade com que teria reparado os do vício. A divindade desse grande restaurador quer que seus efeitos benéficos se exerçam sobre a pessoa adormecida sem qualquer indagação, da mesma forma que a água carregada de poderes curativos não se preocupa com a identidade de quem a bebe na nascente.

Mas, se meditamos tão pouco num fenômeno que absorve quase um terço de nossa existência, é porque é necessária uma certa modéstia para apreciar seus dons. Adormecidos, Caio, Calígula e o justo Aristides equivalem-se. Eu próprio renuncio a meus vãos e importantes privilégios e já não me distingo do guarda negro que dorme atravessado no umbral de minha porta. Que é nossa insônia senão a obstinação maníaca da nossa inteligência em manufaturar pensamentos e formular uma série de raciocínios, silogismos e definições que lhe são próprios?

Ou, ainda, a recusa em abdicar em favor da divina estupidez dos olhos fechados ou da sensata loucura dos sonhos? O homem que não dorme - e tenho tido, desde alguns meses, freqüentes ocasiões de constatá-lo em mim mesmo - recusa-se mais ou menos conscientemente a confiar no fluxo das coisas.

Irmãos da Morte... Isócrates estava enganado. Sua frase não passa do exagero de um retórico. Começo a conhecer a morte; ela tem outros segredos muito mais estranhos ainda à nossa atual condição humana. E, contudo, tão ligados, tão profundos sob esses mistérios de ausência e de parcial esquecimento, que podemos sentir perfeitamente a confluência, em algum lugar, da fonte branca com a fonte escura.

Propositadamente, jamais olhei dormir aqueles a quem amava: descansavam de mim, bem sei; sei também que de mim se escapavam. Todo homem se envergonha do seu rosto alterado pelo sono. Quantas vezes, tendo-me levantado muito cedo para ler ou estudar, eu próprio coloquei em ordem as almofadas amassadas e os lençóis amarrotados, evidências quase obscenas dos nossos encontros com o nada, provas de que a cada noite deixamos de existir...

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