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Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis

Do Stockler Vestibulares*

Esta é uma história fantástica, narrada por um defunto-autor. Brás Cubas, o narrador-personagem, é apresentado nela, por Machado de Assis, como um homem pretensamente superior, a fim de revelar exatamente o oposto, ou seja, o quanto a condição humana seria frágil, precária. Vemos que se revela o realismo irônico, de forma universal e intemporal, surgindo ante os leitores a postura niilista, ou seja, de completa negativa de tudo, misturada à filosofia e à metafísica.

De acordo com Lúcia Miguel-Pereira, a obra, em sua ousadia, deixa de fora o sentimentalismo, o moralismo de superfície, a sonhada unidade do ser humano, o plavreado sentimentalóide, o medo de escandalizar os preconceituosos, a ideia de que o amor sempre deveria prevalecer sobre qualquer outro tipo de paixão, a eterna recorrência à natureza, como se esta fosse a única forma de se colocar a cor local para o leitor. Em contrapartida, homens e mulheres revelam-se como personagens, inde­pendentemente de nacionalidade ou regionalismos; a visão do ambiente e da época aparecem com clareza e o humor é utilizado com maestria, em nossa literatura, pela primeira vez.

"Memórias Póstumas de Brás Cubas" é a obra que sela a nossa independência literária, a nossa maturidade intelectual e social, a liberdade de concepção e expressão de que o Brasil se encontrava necessitado na época. Machado de Assis atribuiu ao romance um caráter regional, sem entretanto deixar de ser brasileiro. Apenas, não teve mais, como acontecia com autores de escolas anteriores, que ficar provando brasilidade em seu texto.

Como perfeitamente sabemos, essa obra é conhecida como um "divisor de águas" na Literatura Brasileira. É ela que divide em duas partes o trabalho do escritor Machado de Assis: a fase romântica e a fase realista, que tem início com sua publicação. Também é ela, em 1881, que faz a passagem do Romantismo para o Realismo brasileiro.

Supostamente, as memórias foram escritas por um "defunto-autor", ou seja, um narrador-personagem que conta sua vida depois de morto, do além-túmulo, o que nos reporta aos "Diálogos dos Mortos" de Luciano de Samósata, escritor grego, dando à obra um caráter luciânico, o que também ocorre no "Auto da Barca do Inferno", de Gil Vicente, e em "Dom Casmurro", do mesmo Machado - uma obra aberta, também característica herdada do escritor grego já citado.

O foco narrativo em primeira pessoa dá ao perso­nagem Brás Cubas o monopólio do texto. Aparen­temente, seu relato caracteriza-se por uma postura de isenção, ou seja, prima pela impar­cialidade, já que um morto não teria qualquer necessidade de mentir, já que deixara o mundo dos vivos e, assim, abandonara qualquer compro­metimento, ilusão ou envolvimento.

No entanto, se observarmos com cuidado, a obra só poderá ser entendida se começarmos por analisar o que o personagem conta, procurando perceber certos sinais, que indicam que ele mente, exagera e chega, inclusive, a ser incongruente. Brás Cubas manipula a história, mostra-se sempre superior, com mania de grandeza, desde o início de seu relato. Chega a comparar seu relato ao Pentateuco, que é um livro sagrado, histórico, fundador de uma tradição religiosa, atribuído a Moisés, um profeta universalmente importante, insinuando que a diferença radical entre este relato e o seu seria apenas o fato de Brás narrar sua existência partindo da morte e Moisés, seguindo a cronologia normal, tomando o nascimento como início. Logicamente, apenas um grande presunçoso não perceberia a diferença entre as duas narrativas, o grau de importância de cada uma, o que nos revela o grande presunçoso que ainda vive no "defunto-autor" Brás Cubas.

A ironia destaca-se no decorrer da obra e direciona-se a vários objetos. Um exemplo, seria a postura romântica, quando apresenta alguns trechos em que a ridiculariza - como a frase de que a natureza chora sua morte ou ao questionar a bondade e a fidelidade do amigo que o elogia em seu funeral, insinuando que o comprara.

Mostra o ridículo de um enterro com onze pessoas presentes, mas não deixa de explicar que os anúncios e cartas não foram feitos, portanto as pessoas não haviam sido avisadas de sua morte. Vemos, mais uma vez, o jogo de Machado de idas e vindas e suas colocações, só que feitos por intermédio de Brás.

É como se Machado de Assis buscasse transmitir uma forma de encarar o mundo, mostrando que a piedade, a suavidade, o afeto, e tantos outros valores estão perecendo na conjuntura em que a Huma­nidade cada vez mais se acomoda.

Notamos que o "defunto-autor" estabelece-se distanciado de Machado de Assis, assim como da humanidade, que não teme desmascarar, ferir, escandalizar, chegando a dizer ao leitor que, se não se agradar de sua obra, tome um piparote, como um inseto que incomoda ou um grão de poeira em nossa roupa, jogado para longe com a ponta dos dedos. Vemos que Brás Cubas não crê no ser humano, daí escrever com a "pena da galhofa", da ironia, do rídiculo, sem, entretanto, sentir-se ferido, usando a "tinta da melancolia" para demonstrá-lo.

O verdadeiro caráter do narrador-personagem revela-se gradativamente, no decorrer do romance. Aos poucos, o leitor vê do que ele é capaz, o que pensa sobre si e sobre os outros, como não tem limites para chegar ao que deseja atingir, sem freios, sem cuidados.

Um forte niilismo pode ser verificado, quando, no capítulo final do romance, ele enumera todas as negativas que lhe compuseram a existência, em todos os sentidos e planos. Apenas alguns pontos positivos, como o fato de não ter que morrer pobre como D. Plácida, de não enlouquecer como Quincas Borba e de não necessitar de trabalho para sobreviver são mencionados, como uma pequena compen­sação para tantos "nãos". É um burguês, de acordo com os personagens realistas, cheio de ilusões e empáfias. Acha-se quite com a vida.

No entanto, ao refletir melhor, em mais uma de suas voltas, acaba por desmentir aquilo que seria um consolo, uma conciliação com a vida. Diz que fez mais, e que carrega um saldo, ainda que pequeno, o qual se constitui na derradeira negativa do romance e em mais uma grande ironia de Machado: em um radicalismo niilista, Brás nega que a Humanidade mereça ter continuidade, vangloria-se de não ter tido filhos, de não dar prosseguimento a sua família.

Vinga-se da vida, recusa-a radicalmente, trata de demoli-la. "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria" é uma frase que nos revela a universalidade da miséria humana, tanto que o narrador troca o "eu" pelo "nós" e, assim, podemos verificar que Brás Cubas se revela como síntese de muitas, ou talvez, de todas as pessoas, com seus fracassos não assumidos, escamo­teados, e não apenas um ser. Machado analisa a todos, de forma profunda, com sua capacidade imensa de penetração psicológica. Desvenda-nos as faces do ser humano, como se de um só falasse.

Temos uma obra em estilo substantivo e anti-heróico, revelado, em uma linguagem ambígua, sutil, repleta de causticidade e humor, usada para ironizar e destruir todas as ilusões românticas mencionadas.

No romance, surgem o uso da linguagem e a interlocução ou conversa com o leitor, que também é denominada "processo do leitor incluso". O nosso narrador, que não é nada confiável, ilude, provoca e desconcerta seu leitor, servindo-se de conversas nas quais ironiza suas expectativas, fazendo, inclusive, reflexões metalinguísticas, usadas para criticar a linguagem e a estrutura das narrativas tradicionais e questionar o próprio processo de criação literária. Um exemplo disso é quando Brás faz a metalinguagem, ironizando, por meio dela, o leitor apressado e acostumado com a estrutura utilizada nos folhetins românticos, nas quais a narração é direta, regular e fluente.

Ocorre, ainda, a quebra da linearidade do enredo, aparecendo microcapítulos digressivos, usados para comentar, explicar e exemplificar outros capítulos. Essa atitude de Machado de Assis fragmenta o romance tradicional. Faz com que o leitor tenha que se esforçar constantemente na montagem, organização, recriação crítica e criativa da obra. Um bom exemplo disso seria o episódio da borboleta preta, uma alegoria à personagem Eugênia, que é manca e pobre. Outros exemplos de fragmentação mais radicais são "O velho diálogo de Adão e Eva" e "De como não fui ministro", capítulos compostos apenas e tão-somente de sinais de pontuação, repletos de ideias, mas vazios de palavras, levando a imaginação do leitor a funcionar.

O romance tem como o espaço o Rio de Janeiro e temos o tempo psicológico - das memórias -, com quebra de linearidade, embora diversas datas sejam citadas.

Podemos dizer que Brás Cubas assume uma posição transtemporal, pois enxerga a própria existência de fora dela, de modo onisciente e descontínuo. Os fatos são narrados quando surgem na memória e várias digressões são feitas.

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