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Referendo na Bolívia - Nova Constituição é aprovada, mas nação segue dividida

José Renato Salatiel, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação

Em "O Príncipe", clássico da política moderna, Maquiavel deixou uma série de conselhos para um governante preservar a unidade do principado, de modo a assegurar a manutenção do poder. O referendo constitucional aprovado no último dia 25 de janeiro na Bolívia, com a vitória do presidente Evo Morales, ratificou efeito contrário: dividiu o país, complicando as condições de governabilidade.

O referendo é uma consulta popular que, no caso da Bolívia, foi realizado para decidir pela aprovação ou não do projeto de uma nova Constituição. O governo conseguiu aval da população com aproximadamente 60% dos votos.

Na prática, a Carta Magna confere mais poderes políticos à parcela indígena do país, que corresponde a 47% da população, estimada em 10 milhões de habitantes. O grupo étnico concentra-se em regiões mais pobres e rurais da Bolívia.

O problema é que as mudanças não são vistas com bons olhos pelo restante dos bolivianos, resistentes aos planos de Morales.

No âmbito político, o referendo comprovou uma divisão do país entre a capital La Paz, favorável ao governo, e a região de Santa Cruz, a mais rica e desenvolvida, que faz oposição ao presidente.

Além de Santa Cruz, Beni, Tarija e Pando registraram vitória do "não" no referendo e pleiteiam mais autonomia do governo federal.

A polarização gera conflitos desde dezembro de 2007. Na época, o projeto foi aprovado pela ala governista fora da Assembleia Legislativa na cidade de Sucre, sede do poder judiciário, na ausência de deputados de oposição.

Foram convocadas greves gerais em seis dos nove Estados e os protestos de rua deixaram três mortos e dezenas de feridos. Em setembro de 2008, novos conflitos causaram 13 mortes, camponeses em sua maioria.

É neste cenário que Morales terá que negociar com os rivais para, agora, fazer valer a Constituição, o que requer mais de 100 leis. Outra forma seria apelar para decretos presidenciais, o que aumentaria ainda mais a temperatura política em La Paz.



Principais mudanças

Constituição é um conjunto de leis supremas de uma nação que regulamentam o uso dos poderes políticos e garantem os direitos dos cidadãos.

A Bolívia vai promulgar sua 16ª Constituição desde a primeira, em 1825, sancionada pelo revolucionário Simón Bolívar. Em comparação, o Brasil teve oito desde 1824, sendo a última em vigor desde 1988.

Mais de 100 dos 411 artigos foram alterados. Os pontos mais polêmicos são os seguintes:

1) Ampliação dos poderes dos povos indígenas:
Ao todo, 36 povos "originários" - que já estavam no país antes da chegada dos colonizadores europeus - terão mais autonomia e controle sobre seu território e participação política no governo.

Pela nova Constituição, as comunidades poderão escolher seus próprios governantes e ter sistema judiciário próprio. Elas terão autonomia, por exemplo, para escolher juízes e aplicar penas que não serão revogadas por outro tribunal.

Os indígenas também conquistaram representação na Assembleia por meio de uma cota de parlamentares, semelhante às cotas para negros em universidades brasileiras.

2) Maior controle do Estado sobre a economia:
O governo terá amplos poderes sobre a comercialização dos recursos naturais do país, podendo nacionalizar setores, além do aumento da presença em empresas estrangeiras.

Na área de petróleo e gás, por exemplo, onde opera a brasileira Petrobrás, em caso de conflito de interesses a nova Constituição impede a "arbitragem internacional", recurso pelo qual se recorre a outros Estados para se chegar a uma solução pacífica para crises.

3) Reeleição presidencial:
O mandato presidencial, hoje limitado a cinco anos sem direito à reeleição, terá a possibilidade se ser promulgado por mais cinco consecutivos. Depois de outorgada a Carta, o governo vai marcar eleições para dezembro deste ano.

Evo Morales foi eleito em 2005 com 54% dos votos válidos. Ele poderá, caso seja reeleito, ficar no cargo até 2014. Morales é o primeiro indígena a conquistar o posto.

A permanência no poder tem sido a tônica de governos socialistas na América Latina, como no caso de Hugo Chávez, presidente da Venezuela há 10 anos graças também à nova Constituição.

Com a vitória no referendo, Morales sai fortalecido para o próximo pleito, mas com a dificuldade de governar um país dividido.



Igreja

Outros tópicos discutíveis do documento envolvem:


  • Propriedades agrárias: o projeto deve fixar em 5 mil hectares o limite máximo de terra para propriedades rurais. Mais do que isso pode ter o excedente confiscado pelo governo.
  • Religião: a Bolívia deixa de reconhecer a região católica como oficial. Além disso, o texto constituinte é vago no que se refere ao "direito à vida" e a "direitos sexuais e reprodutivos". Para a Igreja Católica, são precedentes abertos para a aprovação de leis favoráveis ao aborto e ao casamento entre homossexuais.
  • Política externa: determina também "o direito irrenunciável e imprescritível sobre o território de acesso ao Oceano Pacífico", o que, não obstante o fato de indicar uma solução por meios pacíficos, deixa em alerta os vizinhos Peru e Chile. A Bolívia perdeu o único acesso ao mar para o Chile na Guerra do Pacífico (1879-84).

    Debate

Para analistas favoráveis às mudanças, a Constituição aprovada é mais democrática na medida em que contempla a parcela mais pobre e excluída da Bolívia, permitindo que as nações indígenas tenham mais direitos sobre a terra e respeito a suas tradições culturais.

Já para os opositores, o país perderá sua unidade, fragmentado em 36 nações, e ganhará uma cidadania privilegiada - a dos indígenas - em franco desacordo com os direitos iguais e universais que norteiam as democracias. Além disso, eles argumentam que a centralização da economia vai afastar futuros investimentos estrangeiros. O país é um dos mais pobres da América do Sul.

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