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Verbo, substantivo e casos de ambiguidade

Atualizada em 27/01/2015, às 17h27

Por Dílson Catarino*:

"Papa pede reconciliação de fé e política"

Em 2008, o então Papa Bento XVI disse, na França, enquanto discursava ao lado do presidente francês da época, Nicolas Sarkozy, que a religião e a política devem estar abertas uma para outra. Para o Papa, era necessário se tornar mais ciente do papel insubstituível da religião na formação de consciências e na criação de um consenso ético básico dentro da sociedade. 

Havia, porém, na França, uma estrita separação entre a Igreja e o Estado, por isso o pedido de reconciliação. O nosso assunto, no entanto, não é religião nem política, e sim gramática portuguesa. As informações foram publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo com o título "Em visita à França, papa pede reconciliação de fé e política".

O mote deste texto é o título do artigo, que contém o substantivo reconciliação, cujo significado é ato de reconciliar(-se), que, por sua vez, significa estabelecer a paz entre duas partes, fazer as pazes, congraçar(-se), harmonizar(-se), conciliar(-se). O uso de (-se) indica que o verbo pode ser pronominal: reconciliar ou reconciliar-se.

Quando li o título, senti certo estranhamento, mas entendi o que o autor quis transmitir: o Papa pediu que voltasse a haver, na França, harmonia entre a Igreja e o Estado. A comunicação foi efetivada, portanto, satisfatoriamente. Por que, então, o estranhamento? Explico: eu, professor de gramática da língua portuguesa (ou fiscal da gramática, como já me chamaram no blog coletivo Tipos), sempre estou atento aos mínimos detalhes gramaticais de tudo o que leio.

Notei que a conjunção poderia causar duplo sentido à oração, pois o Papa poderia ter pedido duas coisas: "reconciliação de fé" e "política". Na frase apresentada, reconheço que foi absurdo pensar isso, mas em outras construções com o mesmo verbo e com o mesmo substantivo, a ambiguidade pode de fato ocorrer. Por isso, deve-se usar com muita atenção tal conjunção.

Li mais atentamente o título, analisei sintaticamente o período e constatei que o problema residia no substantivo reconciliação. Vamos analisá-lo com mais profundidade. Antes, porém, quero esclarecer que a minha intenção não é corrigir o autor da frase, mas alertar o leitor quanto ao uso da variedade linguística adotada como norma institucionalizada, principalmente aqueles que se submeterão a algum concurso que exija o uso da língua padrão.

Vamos lá, então: segundo o Dicionário Prático de Regência Nominal, de Celso Pedro Luft, da Editora Ática, o substantivo abstrato reconciliação admite o uso das seguintes preposições:

1. de (ou entre): estabelecer a reconciliação de pessoas, umas com as outras ou entre si. Nesse caso, o substantivo regido pela preposição de tem de estar no plural: Por exemplo: "os ministros entraram em desavença. É responsabilidade do Presidente estabelecer a reconciliação deles (ou entre eles)".

2. com: estabelecer a reconciliação com alguém. Por exemplo: "a Bolívia entrou em conflito com os Estados Unidos. Seria inteligente que os bolivianos procurassem estabelecer a reconciliação com os estado-unidenses". Estado-unidense é o adjetivo relativo aos Estados Unidos, segundo o dicionário Houaiss. 

3. entre ... e: estabelecer a reconciliação entre uma coisa e outra (ou entre uma pessoa e outra). Por exemplo: "é preciso estabelecer a reconciliação entre os bolivianos e os estado-unidenses".

4. de ... com: estabelecer a reconciliação de uma coisa com outra (ou de uma pessoa com outra). Por exemplo: "o Presidente Lula tentará estabelecer a reconciliação dos bolivianos com os norte-americanos".

A frase usada como título do artigo "Papa pede reconciliação de fé e política" está, portanto, inadequada à língua padrão. Se o autor da frase quisesse usar o substantivo reconciliação segundo a variedade linguística adotada como norma institucionalizada, deveria optar por "entre ... e" ou por "de ... com", e não por "de ... e":

  • Papa pede reconciliação de fé com política.
  • Papa pede reconciliação entre fé e política.

*Professor de gramática da língua portuguesa, literatura e redação, desde 1980.